quinta-feira, 18 de agosto de 2016

O negrilho? Leia-se o poema!



O negrilho de Miguei Torga, em 1984




Na terra onde nasci há um só poeta
Os meus versos são folhas dos seus ramos.
Quando chego de longe e conversamos,
É ele que me revela o mundo visitado.
Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada,
E a luz do sol aceso ou apagado
É nos seus olhos que se vê pousada.

Esse poeta és tu, mestre da inquietação
Serena!
Tu, imortal avena
Que harmonizas o vento e adormeces o imenso
Redil de estrelas ao luar maninho.
Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso
Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!


Miguel Torga, in
Diário (VII), 1956
,


No largo do Eirô, coração de S. Martinho de Anta, encontrámos apenas um  tronco descorticado.

Fora aquilo  o negrilho do Torga? Sua árvore confidente.

Paro, para rever  árvores-conversadas da minha mocidade: a nespereira-navio, proa  de tantas viagens, cada tardinha,  no regresso das primeiras classes; a figueira-dos-lampos donde uma queda me levou o primeiro dente; a oliveira-da-mulher, cujo nome se recusavam a explicar-me, devido á minha tenra idade… Quantas fantasias engendrei até chegar à chave daquele enigma: porquê da mulher? Árvores  namoradas, que isto mesmo são. Para não falar do cedro…

O negrilho? Dias antes, num lugarejo de Resende, o agricultor e artesão que  vendia brezas, garantia que o fecho de tais cabazes, encordoados  em  palha centeia e casca de silva, continua a ser, conforme a tradição, em madeira de negrilho. Ulmeiro! Duvidei.

E, antes de nova deriva,  ocorre-me o abate do ulmeiro no largo da Achada, em Lisboa.  Também centenar, ou quase. Resistira a secas, às obras camarárias. Resistiu à praga dos da sua espécie. Num jornaleco do bairro, surgiu um apelo: "Cuidem do ulmeiro da Achada!" Foi um acordar de moscas: não tardou  a brigada da motosserra. Vítor Maçariku, vizinho da Casa da Achada - Centro Mário Dionísio – , filmou com  desgosto. E pouco lhe sobreviveu. Para que serve a memória, Vítor? – perguntam os que ficaram.

E já me perco  pela  abertura de A jangada de pedra. Não sabias tu, Joana Carda dos poderes mágicos da tua vara de negrilho? Como não?!

E com istofalta falar do negrilho de Miguel Torga.

Assim o encontrámos, em junho de 2016

Roubado dos ramos que lhe arquitetavam a dignidade de bosque, elevando-o acima dos telhados. Dali, partiam  pássaros e chilreios. Ouvia-os o menino poeta, despertando no seu quarto. Iam distraí-lo  no seu banco de escola, a dois passos do largo do Eirô.

 Onde fazem hoje os seus ninhos?
E o tempo?  Soberano implacável, encarregou  o carrasco grafiose de punir  tamanha insolência vegetal. Como se arrogava uma árvore a ter intimidades com as luzes do céu e os desvarios de um poeta?

Deixemos a ruína.  Apetecível braseiro, em friorento inverno, pensará um prosaico observador. Por que me dão estes repentes, em tarde  tórrida?

Finitude da cinza ou frustrações incendiárias?

 Resta-me confiar nas medidas redentoras da direção do Museu de Miguel Torga, em Sabrosa. Que um museu é sempre um paliativo, no tragadouro do tempo.

Vamo-nos  embora. O sol castiga. Sede. Onde há um café?  Quantas garrafas de água fresca?

Obrigado, companheiros de peregrinação. Não queremos que isto seja  o fim, não.

 Joaquim Beja

 Observações: Escrito também  a pensar nos meus amigos Vizinhos do Livro, visitantes fiéis deste espaço.
 
Referências:

http://dias-com-arvores.blogspot.pt/2006/04/um-negrilho.html

http://www.sabrosa.pt/cultura/espacos/index.php?idioma=pt&action=getDetalhe&id=2





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