segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

A minha escola primária (2ª série)



Aqui temos o livrinho  que nos desafiou: Crónicas de Marta Caires. Sugere-se a sua leitura, a quem sabe envelhecer com os sentidos despertos pelas memórias da infância.



 
Maria José




A minha escola primária


Eu nasci a 19-9-48, na aldeia do Ladoeiro, concelho de Idanha-a-Nova, distrito de Castelo Branco.


Em Outubro de  1955, fui para a 1ª classe. A minha mãe levou-me à escola, e foi-me dizendo que eu iria gostar, pois iria aprender muitas coisas. Ia muito excitada, dentro da minha bata branca e com uma sacola onde levava um livro, caderno, lápis e uma pedra.


Ao chegar lá, a minha mãe entregou-me a uma professora e eu lá fiquei bastante inibida.


Fiquei com a  D. Estela e esta ficou também com a 3ª classe.


A escola era muito bonita com rés-do-chão e com um jardim e um primeiro andar. Na parte de trás havia 3 casas de banho, mas não havia água canalizada nem luz eléctrica. Mais atrás havia um campo, onde se jogava à bola quando o tempo estava bom.

Éramos só raparigas, e pegada à nossa escola havia a escola dos rapazes.  Só nos juntávamos para fazer competições, estas organizadas pelos senhores professores. Era um tempo em que havia muito respeito pelos senhores professores.

Os nossos pais ensinavam-nos a respeitá-los muito e davam-nos o exemplo. A minha professora ensinava-nos muito bem e levou-me até à 4ª classe.
Este exame foi feito em Idanha-a-Nova, mas íamos bem preparadas.
Lembro-me que a senhora professora gostava que eu perguntasse a matéria dada às colegas e eu ficava muito vaidosa e contente, pois era costume serem os melhores alunos a fazerem isso. Também gostávamos muito de esperar a chegada da nossa professora, para lhe tirarmos a pasta e o peso que ela levasse. Sentíamo-nos prestáveis e agradávamos com essa pequena delicadeza.



A minha professora também fazia uso da menina-dos-cinco-olhos , quando lhe parecia que se justificava; e colocava-nos as orelhas-de-burro, sendo isto muito traumatizante para nós."
                                                                                                                                                                 


Joaquim B.
"  [...]

VOU PARA A ESCOLA!*

As vindimas, as primeiras chuvas. Aromas outonais. Sinais de abertura das aulas. Aproximava-se o dia 7 de outubro de 1950. Ansiedade.

 Uma manhã, ao passar em frente da grande janela da adega, gritei para o pessoal que pisava no patamar da tinta: «Vou para a escola!». Vaidoso, enfarpelado na bata branca, um pouco contrafeito pela obrigação de levar, a escorregar-me da cabeça, um palhinhas  de arroz. Compra habitual da minha mãe, ao chegarmos em cada época balnear à Nazaré.

Não sei se algum dos trabalhadores que espreitou – espero que não tenha reparado no ridículo chapéu – a seu tempo  tinha ido à escola. Se se tinha visto naquela estranheza da bata e da mala de papelão ou da sacola atravessada  no peito, a caminho das aulas.

Não, de certeza, o Herculano Salsa, capataz. Mesmo assim, onde teria ele ido desencantar  as histórias duns gigantes - o Arranca-Pinheiros e o Passos-de-Légua -  que eu não cansava de lhe ouvir?

 Haveria na escola quem contasse  histórias tão interessantes ?

Foi o meu pai que me levou. Era sábado.

Passados todos estes anos, continuo a sentir no ar a expetativa outonal das terras aguardando sementes, em cada regresso letivo. Mesmo aqui em Sintra, aula aberta para a minha última encosta verdejante.

Que sina! Entrei na escola, nesse tal sábado, e deixei-me ficar, por tanto tempo… Camponês , esquecido de insucessos da colheita transata; esperançoso no reverdecer da nova seara. De nova turma.

Ainda hoje estou em crer que o meu pai, nessa manhã, seguia para a escola tão feliz como eu; a considerar pelo tom prazenteiro com que ficou à porta, em conversa com a velha professora. Perguntava-lhe ela pelas andanças dos seus antigos parceiros, que bolandas lhes trouxera a vida. Sobretudo os que, se foram ausentando das redondezas da escola, e das ruas da cidade.

Hoje (escrevia, então, em 1996), poucos restarão vivos dessa turma da D. Angélica… Ainda eram muitos, quando em abril de 1978 se prestou, na escola da Portela das Padeiras, uma tardia,  mas sincera  homenagem a essa professora.

Festa em que  o meu pai continuava tão radiante - ele tinha um fraquinho  por esta palavra -  como no sábado em que me entregara à nossa professora.

Partiu em abril de 1995, o meu pai. Mente já muito perturbada, gritando inesperadamente pelos nomes dos seus colegas, convidando-os aos jogos no recreio, desafiando-os para antigas sabatinas, dirigidas pela D. Angélica.

 NO PÁTIO DA ESCOLA COM A MATULA DA BESTEIRA

Ali estava eu,  de chapéu na mão. Com uma ardósia e um livro a chocalharem dentro da mala; coração chocalhando  no peito. Ansioso pelo fim do palavrório.

Farto de mirar os dois pisos do edifício ocre, de paredes escalavradas. Dera  de barato ao primeiro andar, residência da professora,  todavia  em pulgas para trepar os quatro degraus até ao  patamar de acesso à grande sala de aula.

 Antes, quando a pé passava na estrada, avistava o coruto das cabeças dos meninos, para lá das janelas enormes. Fixados nos gestos da professora, aturdidos, certamente, pelas coisas  interessantes que ela lhes ensinava.  Quando chegaria a minha vez?

 Foi então que me recomendaram cuidado!. Estivesse  também preparado  para o berreiro,  tabefes, puxões de orelha e cabelos; pancadas de cana-da-índia   e régua. Que nunca ficasse   exposto, além – e apontavam a janela do opróbrio,  ao lado da roseira –  com orelhas-de-burro. Mesmo já então em desuso, o castigo  subsistia com ominosa recordação.

Cenários de crueldade, nas aulas  da D. Angélica,  não eram segredo. Minhas tias Lucinda e Piedade sempre reclamaram contra tais ações educativas, em confronto com a condescendência da maioria dos  antigos alunos. Que as tomavam como um mal necessário: "De pequenino se retorce… " etc.

Embora  com  este receio, sentia que nunca mais se abria aquela porta.

Um grito explosivo despertou-me para o recreio: «Saraquicaaa…lho!!!», berrava um matulão, agarrando um adversário de um jogo .

Saraquicalho: confronto de rapazes. Uma equipa, ao mesmo tempo que  defendia um reduto desenhado no chão – o coito -, perseguia outra. A captura de um  fugitivo era anunciada com aquele berro vitorioso. No mais, corridas, fintas, avanços e recuos em direção ao coito. Onde os perseguidos tentavam entrar sem ser catrafilados. E, se  isso sucedesse, outro grito rompia da garganta do invasor: «Livre!!!!»

Não era um jogo fútil, recordo nesta revisão, antes  um símile da própria existência : perseguição, fuga, liberdade, abrigo…

Muitos dos  intervenientes eram rapaziada da Besteira. Sem interromper o volteio, pelo pátio das traseiras, acenavam-me, sorridentes.

Quem não alinhava no saraquicalho, esganiçava-se a pontapear, mais ao largo, a trapeira.

 Rapazes cabritando num espaço mal arroteado, sentindo de certeza os pés dilacerados pelo  mato restante, dos tempos em que uma grande quinta vizinha se alongava até à estrada nacional.

 Segundo a minha mãe, a escola fora implantada numa  anterior área de  pinhal, cedida  pelos proprietários da  Quinta dos Anjos. Compensando-se  a comunidade local, desse modo privada do secular  acesso livre a festas e serviços religiosos, na capela da Senhora dos Anjos, no coração da quinta. Cambalhacho dos primeiros anos da República, a que a minha bisavó Perpétua, de hábitos monárquicos e católicos,  teria retorcido o nariz. Dali avante, se queria missa dominical, restava-lhe albardar a burra  e pôr-se a caminho  da cidade.
Do lado oposto, apartadas da vista deles pelo edifício escolar,  as meninas ocupavam um terreiro bem comportado,  plantado de robínias.  Cantavam de roda, corriam a bebericar no poço, por entre alegretes  e alfobres de um hortedo. Onde a professora e o vizinho Silvino Direitinho cultivavam flores e legumes, em parceria; com ocasional mãozinha voluntária dos alunos mais encorpados.
Pois o poço. «Minha senhora, posso ir beber água?» Que fôssemos, não bebêssemos do balde. Disso já me avisara o Rebelana, para não se apanhar boqueira, nem correr o risco de ser arrastado pela corda.  Acrescentara ainda uma informação ornitológica: reparasse nos  ninhos de viuvinhas, por entre as   tijoleiras da parede. De pássaros percebia ele.

Ele e muitos dos machos  escolares dos Casais da Besteira, por alcunha: Coquelim, Rebelana, Techarra, Padreca e o Quintas… Este, irmão do  Rebelana, filharada do Ginja e da Rosa Bento. Dei pela falta do Bisoiro que, tendo reprovado na terceira classe, fora posto a guardar cavalos na quinta  dos Gatos. Raparigas daquela vizinhança, havia uma, a Genita, irmã do Padreca.

Nesse sábado, chegavam mais uns novatos: eu, - presente, minha senhora! - o meu vizinho Pedro, o louro e endiabra -do Pedro Gato, e o Toino-Toino do Pagante . E só uma  rapariga, a Fernanda, da Maria dos Reis.  Muito tinha ela de caminhar, entre silvas e valados, desde  casa até  à escola.

Crianças de muitas mães… Tenho de encurtar a prosa. Pobres ou remediados, limpinhos (pelo menos no primeiro dia) ou andrajosos; penteadinhos de risco ao lado, trunfa rebelde empastada a brilhantina, geleia de marmelo ou, tão somente espuma de sabão azul… Sim, para não falar dos rapados, a vinte e cinco tostões, no quarto minguante, na cadeira do mestre Adelino Barbeiro, meu tio, marido da tia Lucinda. Terminada a limpeza, sacudida a toalha, logo eles voltavam a enterrar a espanhola até às orelhas. Por algumas vezes,  (quem não sabia das aflições desse tempo?) tinham as famílias de contar com o bom coração de outro mestre, o Jaquim Ferrador, ali a dois passos da nossa sala de aula.

Uns calçados de  botas ou sapatas ensebadas, que os  sapateiros da Benedita vendiam na feira, em Santarém; tantos de pés ao léu, solas encoiradas pela agrura dos caminhos.

M. de Alcanhões, quando um dia  o invetivei por ter "metido o chico", para seguir a vida militar, em plena guerra colonial, deu-me réplica irrefutável. Só tinha calçado as primeiras botas aos quinze anos! Para continuar na serventia a pedreiros. A tropa sabia-lhe a pera doce.

E havia as miúdas.  De tranças a tilintar sorrisos, laçarotes,talvez borboletas, asas de arvéloas… As meninas que ainda hoje lá continuam em roda no recreio daquela e de todas as escolinhas do mundo. Na grande roda seguem, agora,  a Marta e Sofia, o Tiago… Lá irás também, bebé Álvaro!Que as apartações nos jogos infantis  foram  bafios  daqueles antigamentes.

Elas, tenho de confessá-lo, eram, salvo exceção, muito mais rápidas a papaguear as lições e a cumprir as vontadinhas da professora.

 Lembras-te, Nucha? Rucha, chamava-te o Padreca, pois  tu eras ruiva como uma irlandesa. Lembras, sim. Apareceste ali naquela manhã, queixito empinado para o basbaque dos rapazes. Canudinhos cenoura, num  esconde-esconde sobre um rosto tão sardento.

[«Desapareceram-te as sardas, Nucha?» Agora! Sem rodeios,  explicaste, várias décadas depois,  em que zonas ainda te persistiam. Teu marido sorriu da minha perplexidade. Velhice, sem malícia.]

Garotada da bata branca. Branca, à força de barrelas de cloreto. Quantas vezes corregia a professora que não se dissesse clareto. Mas porquê? Se  era nome  muito mais evidente. Bata branquinha, ainda que lavada na água barrenta ou escassa de alguma alcorca. Mesmo assim, as manchas e mágoas  que elas escondiam, as nossas batas.

As dos rapazes, abotoadas à frente ou sobre o ombro esquerdo; as das meninas, em bibe, fechando nas costas. Com uma algibeira, que a gente dizia mais  algibeira do que bolso, do lado do coração. Onde as mães bordavam a ponto-cruz um “EP”, azul ou rosa. Orgulho da professora, logotipo da sua missão, “Escola da Portela”. Da Portela das Padeiras, para onde vazavam catraiada, além da nacional 3,  todos os caminhos e quintas em redor…

Miúdas e miúdas, de gente agarrada ao  sítio. Que dali  empurrados, pelo trabalho, guerra, emigração... se haviam de espalhar pelo mundo. E hoje não topo internet que os recupere.

Quantas vezes não pensei que eles e elas, sim, servindo-se ou não do quase nada que a escola lhes dera, foram por aí fora, enquanto eu fiquei tolhido na quadrícula das carteiras das aulas.

Da ultima vez que conversei com o Pedro Gato, congratulámo-nos com o facto de tantas dificuldades dos nossos antigos condiscípulos terem sido despistadas. Pelo seu relativo sucesso na vida adulta. Graças à escolaridade e ao empenho profissional. E à sorte, acrescentou. Tinha razão, anui em silêncio… E em silêncio nos abraçámos à despedida. Para nunca mais.

«Para dentro, meninos!»,  chamou a professora. Meu pai acenou e foi à sua vida, com o pai do Pedro.

Estava na hora. Com os outros, trepei para a sala de aula... Meu poleiro de uma vida. "
*Excerto de um relato autobiográfico, cedido pelo Autor a terceiro, para   trabalho académico. Texto em processo de revisão.