segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

...ali estava ele, abraçado à Xerazade

"Leitura
Sessão de leitura
Com toda a ternura [...]

[...]Para desenferrujar a mente
Desta honesta gente,
Nesta digna sociedade."
Normando Alves Barreira


Que se conforme o Vizinho Normando com estes respigos das suas rimas de   apreço pela actividade que vimos desenvolvendo. A parte omissa, pelo tom elogioso, a um membro do nosso Grupo,   destoaria certamente
. Vamos, sim senhor, manter o ambiente de ternura, tão necessária a nossa faixa étária, aproveitando sempre para desenferrujar a mente.

Há sessões que merecem uma crónica paralela, para além dos momentos de fruição do texto escolhido.
Houve um dia em que alguém saiu da sessão a pensar que, conto por conto, narrativa mais ou menos e tal e coisa, se poderia dar voz a isto:

Diz ele: Fiz tropa na Marinha. Um dia mandaram-me pintar portas, janelas, armários e estantes da biblioteca do Ministério, no Terreiro do Paço. Aguenta que é serviço, ele que nunca tinha entrado numa casa com tantos volumes. Cuidadinho com os materiais, não esborrate a tinta do restauro os frágeis papéis pintados que dão corpo a cada livro.
 Era preciso não confundir aqueles que sabem apreciar um bom livro com os que se obrigam à perfeição do trabalho manual.  Recomendação constante de alguém, nas semanas que durou a tarefa.
Até que  o marinheir-pintor não resistiu. Porque aquele título chamava-o, não do fundo do mar, mas dos serões de Valpaços, a ouvir da boca da avó restos de histórias das Mil e uma… Não senhor, a avó não sabia ler.
Como em formatura no convés, lá estavam eles, todos os volumes da obra, coisa que  a avó nunca poderia ter imaginado. Ali à altura dos olhos.
Poisou trinchas e pincéis, o marujo. Reparou nas mãos, não queria conspurcar a mestria do encadernador.
Os dedos avançaram. Sem saber como, ali estava ele, abraçado à Xerazade, a filha do Vizir. Embarcando com Sinbad.
Na manhã seguinte voltou às tintas. Ansioso por uma pausa, para mais um encontro com a filha do Vizir.
JB


terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

SAPATOS?... AS CRIANÇAS CRESCEM DEPRESSA

Ainda temos mais dois vizinhos contribuindo com  pequenos textos, a propósito dos sapatinhos do Hemingway. Quase todos os  elementos do Grupo de Leitura responderam ao pedido de colaboração, pena  que, de momento, só tenhamos dois  exemplos disponíveis.
Ambos revelam especificidades de autoria. No caso de Joaquina Faia, uma breve emoção de avó reencontrando-se com os netos,  hoje já  crescidos. Quanto a Normando Barreira, o hábito de contar  versejando.

Dirá Joaquina:

 Vende-se sapatinhos de bebé, nunca usados
Para menina ou menino: pois as crianças cresceram rapidamente e não chegaram a calçá-los. Pela mesma razão, também há roupinhas e brinquedos
Recordo com saudade e ternura a idade dos meus netinho, quando os podiam usar, eu os embalava para adormecer, e me diziam: "Vò, conta uma história."
Hoje já são crescidos,,,,sempre com um doce sorriso de criança, dizem muitas vezes:" Vó Quina, gosto muito de ti!"
                           Joaquina Faia


Rimará Normando:

Vendem-se sapatinhos
de bebé não usados,
anunciava o pregoeiro,
na feira que frequentava.
Muita gente ouvia,
mas... não se atrevia,
Sapatos?...não comprava.

Normando Alves Barreira

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

"Vendem-se : sapatinhos de bebé, nunca usados"

CONTO
 

Era Primavera; não muito diferente de outras.

Um tímido sorriso aflorava o seu rosto, ao contemplar aquele letreiro, na pequena montra, decorada com afectos e muita cor.

Serenamente, como só a idade e o muito viver permitem, abriu a porta e iniciou o ritual de todas as manhãs, tão de si já involuntário: tirar o casaco…pendurar a mala….olhar breve e de relance ao espelho decorativo com que brindara a parede frente ao balcão; fora comprado num daqueles dias em que vá lá saber-se porquê, acordamos com vontade de um mimo...coisas normais, mas que nos conforta, porque julgamos merecido!

Parou….o mesmo olhar para o relógio, 10 H, e então Mariana preparou-se para mais um dia ; clientes, na maioria senhoras, opiniões, às vezes elogios, aqui e ali uma confidência, muita solidão, ora envergonhada ora confessada e, pelo meio, ia vendendo uns sapatinhos de bebé: azuis, rosa, verde, amarelo…hoje era tudo diferente de antigamente…a cor já não era assim tão importante, tão obrigatória, quase ponto de honra; ainda bem que mudara…podia dar mais asas à sua imaginação e colorir, à semelhança de paleta de pintor, aqueles sinais de vida que iam despontando ao longo do dia.

E, nessa manhã deu por si a recordar as voltas que a vida dera e como acabara por chegar ali.



Agora tinha que interromper o seu pensamento…entrara uma senhora…atendeu-a, agradeceu, mais uma vez desejou um bom dia e continuou a sua viagem de regresso ao passado…onde ia eu? Ah…sim…, talvez se a D.Gina não a tivesse entusiasmado…quem sabe? O que faria agora?...uma coisa era certa…nunca se arrependera.

Já ia àquela pastelaria, à da D Gina, desde que casara; todos os dias se habituara a tomar café ali, antes de apanhar o metro para o emprego.

Gostava do sítio…acolhedor, pouco barulhento, sol a entrar logo pela manhã…o cheiro do café a sair…e a D. Gina sempre amável e sorridente; às vezes o rosto mente ao coração…sim, ela bem o sabia…tinha sido por causa disso…um dia, já passados alguns anos…alguns? muitos …então já estava quase a reformar-se…bem, nesse dia tinha falado mais um pouco com a D. Gina…o tempo tinha-as aproximado e vencido a barreira do vulgar cumprimento,  para de quando em vez,  dar lugar a um desabafo…a uma confidência mais pessoal…coisas próprias de mulher : Mariana falara-lhe da sua impossibilidade de ser mãe, do desgosto, da mágoa, do vazio ...não, do marido nada tinha a dizer …sempre gostara dela e o demonstrara…mas a ideia de adopção…isso não! e perdera então toda a esperança…o tempo acabou por suavizar, mas nunca preencheu um certo recanto, lá, dentro dela, sabe como é !

Outra cliente….Mariana conteve o pensamento…desta vez demorou um pouco mais; era uma cliente indecisa…mas, paciência era com ela, e lá ajudou a senhora que saiu bem satisfeita…adeus…um bom dia!

Agora e novamente o sorriso, lembrava-se como se fora ontem…

D. Gina sabia como ela tinha jeito para tudo quanto fosse trabalhos de mãos, tantas vezes tinha elogiado as suas pequenas obras …casacos, camisolas, luvas…e então nesse dia dissera-lhe que estava para arrendar uma pequena loja, ali bem perto…e agora que Mariana se ia reformar, podia abrir um pequeno espaço e tentar vender as suas peças….passaria o seu tempo com o que lhe dava prazer e ainda retirava um pequeno lucro….

Mariana nesse dia não pensou em coisa alguma e a partir daí só se aquietou, quando, reformada, viu abrir-se aquele pequeno ninho.

Já tinha decidido há muito como iria ocupar o seu dia; é verdade que não pudera ser Mãe mas nada a impediria de sonhar, imaginando em cada sapatinho que tricotava, o bebé que o iria usar e neste suave fingimento, estranho conforto de  mãe que não era, o tempo se ia escoando.

Quando Mariana deu por si, já estava de regresso a casa. Nem dera pela saída.

Só se apercebeu, quando lhe fizeram companhia os últimos raios de Sol daquele dia de Primavera.

Maria José Ribeiro