quarta-feira, 15 de abril de 2015

O poço dos ciúmes


 

 

 

Andamos há largas semanas sem dar conta dos nossos jogos de leitura, contudo os Vizinhos do Livro não se atiraram ao poço da mândria, antes se ocuparam com a descoberta de textos da Maria Teresa Horta, autora sobre quem mais se dizia do que se sabia. Assim, dedicámos sessões a excertos das Meninas e, com particular gosto, às  As  luzes de Leonor. Neste caso, não faltaram emocionados comentários sobre as páginas das núpcias da marquesinha.

 
Atropelando o tempo, cruzámo-nos com Boccaccio, para confirmar como a distinta sociedade de contadores e contadoras de estórias do Decameron consubstanciava o ideal deste nosso humilde grupo. Foi a tradução e seleção de Ester de Lemos - Novelas do Dcameron , Verbo, 1971 - que nos ofereceu uma primeira oportunidade de leitura e reconto, oral e escrito. Houve quem arriscasse que o esforço inteletual, exigido pela reconstituição da matéria narrativa, não seria inferior ao daquelas nossas colegas que optaram pela ida a uma palestra sobre processos cognitivos, a decorrer em simultâneo noutra instituição de Rio de Mouro. Coisas incomparáveis, dirá o bom senso.

 
Começámos o nosso Decameron pela IV novela, da VII jornada, ou seja, em sinopse:

 

«Tofano deixa uma noite a mulher fora de casa, e ela, por mais que suplique, não podendo entrar, finge atirar-se a um poço e atira uma grande pedra […].»

 
Aqui se suspendem os acontecimentos, pelo que cada participante só recebeu para leitura domiciliária uma versão truncada da dita novela. Ficcionar o desfecho da cena, ao jeito de cada um, tornava-se, então, um desafio.

 
Bem-humorado foi o nosso reencontro. O trabalho de casa divertira, quer quem fez apresentação oral quer quem alinhou pela escrita, conforme foi o caso de Joaquina, Josefa e Leonilde.

 

 

 

 

 

 
Joaquina  Faia Oliveira:

 



         - Tofano! Tofano!

         O homem estava apavorado que nem ouvia a mulher.

         - Tofano!

         A certa altura, o homem parou a pensar que o chamamento vinha do poço. Ao chegar aí, meteu o balde com a corda mas não encontrou sinal algum, só um silêncio profundo.

Ao voltar para casa, vê a mulher na janela, pensando que estava embriagado ou enlouquecido, tentou abrir a porta, mas estava fechada por dentro. Nesse momento compreendeu que tinha sido enganado.

 
Os dois serviram-se da mesma estratégia para a vingança.

A astúcia da mulher levou-a a lutar pelos seus interesse, mostrando ao marido que o ciúme excessivo pode provocar o fim de um relacionamento.

 

25-03-2015

 


 

         Josefa:

 


         Monna Ghita, à janela.

- Acudam! Acudam! Que o meu Tofano endoidou. Saiu dizendo que ia regar a horta, deixou-me fechada em casa, e aí vai com balde e corda, a caminho do poço. Mas que vai ele fazer? Ai aquele poço! Acudam que não tenho chave.

A primeira pessoa a chegar foi o tal moço que a cortejava e com quem ela discretamente seroava.

Encontrou o vizinho debruçado sobre o bordo do poço, mais dentro do que fora…

- Vizinho Tofano, ó homem, tenha juízo, a horta não precisa de rega.

 

- Deixa-me rapaz, deixa-me esvaziar este poço. Mete-te na tua vida.

 

Se assim queres, pensou o rapaz, vou dar-te uma ajuda. E, com um pequeno impulso, empurrou-o, pondo-se logo a gritar por socorro.

 

Logo apareceram pessoas com mais baldes, cordas e uma lanterna. 

Mas estava frio, a água era funda, não conseguiram tirar o corpo do Tofano com vida.

Mais gritaria, choros, orações. Pobre homem!

Monna  Ghita  tinha uma explicação para aquela infelicidade. O vinho, sempre o vinho.

- O meu homem voltou a entrar em casa perdido de bêbedo, com insultos e ameaças, o costume. Até que adormeceu. Quando eu julgava que ia haver sossego, ouvi-o estremunhado: «Ficas aqui, que eu vou regar a horta: Onde está o balde?» Aquilo era um pesadelo ou coisa ruim.

 

- O meu Tofano! E agora… Agora o que vai ser de mim? Faz-me tanta falta.

 

Dela se aproximou o tal rapaz, cheio de compaixão:

 

- Não desesperes, Monna Ghita, Deus vai ajudar-te a ultrapassar este momento, e nós os  aretinos também.

 


Leonilde

 


A mulher indo para a janela começou a dizer:

- Com papas e bolos se enganam os tolos! Consegui que saísses de casa e fui eu quem te trancou a porta. Só espero que compreendas a lição que te dei…

Tu foste ao poço para me salvar, mas a tua preocupação era salvar a tua honra…

Depois do que eu te disse, sabias que a aldeia fazia justiça e te matavam por uma coisa de que estavas inocente…Isto para veres o que custa sermos acusados daquilo que não fazemos.

O que estava a acontecer comigo, a tua desconfiança só nos prejudicou, acabei por fazer o que não queria: ser-te infiel.

Agora, depois disto, achas que devemos desconfiar e difamar pessoas inocentes?

Perdoo-te por tudo o que se passou. Tu és o homem com quem quero continuar a viver e vou respeitar-te até aos últimos dias da minha vida. Sem rancores nem desconfianças e seremos felizes para sempre, até que um de nós parta primeiro.  

 

         Maria Leonilde Costa Sousa, ano 2015


É tempo de se perguntar qual das nossas três Vizinhas do Livro mais se aproximou versão original. Para isso aqui se dá a relação fiel e sem espúrias moralidades do próprio Boccaccio:

 

«

[…]

Os vizinhos, tanto homens como mulheres, começaram todos a repreender Tofano e a culpá-lo, e a censurá-lç muito pelo que dizia à mulher: em breve tanto se espalhou a história de vizinho em vizinho, que chegou aos ouvidos dos parentes da mulher. Estes, chegando ali e ouvindo o caso de uns e outros vizinhos, agarraram Tofano e deram-lhe tanta pancada que o moeram todo; depois dirigindo-se à casa, tomaram a as coisas da mulher e com ela voltaram para casa, ameaçando Tofano de fazerem pior. Tofano, vendo o caso mal parado e que os seus zelos o tinham deitado a perder, como queria muito à mulher, serviu-se de certos amigos como medianeiros, e tanto andou que em boa paz tornou a ter a mulher em casa, e lhe prometeu não tornar a se ciumento; e além disso lhe deu licença de fazer tudo o que lhe agradasse, mas com tanta arte que ele não se apercebesse de nada.

E assim, como o vilão tolo, fez as pazes depois do dolo.

E morra o ciúme, e viva o amor e toda a companhia!»

 

 

Diria o nosso Gil Vicente, pela boca de Pêro Marques, uns bons anos depois de Boccaccio:

 

«É assim que se fazem as coisas!»

 

As  “tais coisinhas” que Monna Ghita e o seu jovem amigo fariam ao serão, pelos cálculos da nossa leitora Ilda.