sábado, 26 de novembro de 2016

E quando os seniores ainda sonham?...






A Pedra Filosofal, ao virar da esquina
 



Texto de Elvira Carvalho


O SONHO COMANDA A VIDA!

Na última reunião do Clube de Leitura, ficara combinado, caso não chovesse, que faríamos  uma visita ao mural, pintado pelo artista STYLER, na escola nº1 de Rio de Mouro.

Ora, no dia 9, São Pedro ouviu as nossas preces, pois é bem mais revigorante uma aula ao ar livre que enfiados no «cubículo» onde decorrem as reuniões….

 Chegados perto do mural e depois de várias tentativas de procurarmos no passeio, (mas quase em vão!) um sítio limpo de dejetos caninos, admirámos, então, em geral, a obra : bom desenho, cores quentes e a frase com a qual começa o poema: «Eles não sabem nem sonham…»

Ouviu-se uma voz atrevida, entoando a genial música de Manuel Freire, mas logo o nosso «maestro» com a sua batuta eliminou o dó e o ré, lembrando às participantes que tinham ido ali,  com a finalidade de interpretar os desenhos que o artista pintara ….

O primeiro é uma escola: será que ele imaginou que é lá que se iniciam os nossos sonhos? Que desbravamos as mentes e transmitimos à criança os primeiros ensinamentos para, finalmente, sonhar? E a borboleta multicor, símbolo de liberdade, esvoaçando através dos céus, personificará os nossos sonhos que são atingíveis por todos aqueles que se esforçam e têm vontade de vencer…

Seguidamente, a menina, recostando displicentemente o queixo no braço, cara diáfana e olhos meigos postos num horizonte sem fim, com um sorriso misterioso, antevendo como se sentirá vitoriosa ao ver os seus sonhos, um dia, realizados. A seu lado,  um calhamaço, a que ela não dá grande importância, pois os sonhos não estão gravados em livros, mas na nossa fértil imaginação. E a borboleta lá continua esvoaçando como símbolo daqueles que sabem que há comunhão estreita entre a ciência e a poesia. Talvez, por isso, Bartolomeu de Gusmão idealizou a frágil passarola que, infelizmente, não teve o impacto que ele imaginara, mas que foi, de certeza, a mola impulsionadora de outras invenções futuras. A paleta das aguarelas simbolizará toda a panóplia de exímios artistas e sábios, que se distinguiram na pintura, na arquitetura e na ciência.

 Surgiu depois aos nossos olhos uma garrafa com um barco no seu interior e várias foram as interpretações: foi unânime que o barco fazia alusão à época dos Descobrimentos. Mas porquê dentro de uma garrafa? Será que significa o esforço hercúleo dos nossos navegadores que, mal preparados física e tecnicamente, se atiraram com frágeis caravelas para o mar cruel, em busca de terras distantes e desconhecidas, com as quais eles tantas vezes sonhavam? Será que significa a aventura  e a esperança de chegar a bom porto? Este «será» fica dependente do que cada um imaginar.

A cor castanha que brota da garrafa, pode personificar as longínquas terras descobertas, ou a canela e outras especiarias, o ouro e o marfim, que enriqueceram o nosso império. E, como diz o poeta, o sonho é uma constante da vida e, assim, baseados em invenções anteriores, o homem construiu o carro que trouxe uma melhoria na sua vida sócio económica, começando a realizar viagens, a ter momentos de lazer, conhecer outros lugares e outras gentes. Aparece, então, a rádio e a televisão. E o homem comum ficou abismado com a formidável descoberta feita por seres que perseguem os seus sonhos. Os mais incrédulos pensaram: - Como é que um montão de fios e fiozinhos conseguem «esparrachar» no ecrã as caras dos nossos ídolos, encontrando-se eles tão longe?

Sim, era de pasmar, mas o sonho continuaria a comandar a vida e o homem quis sempre concretizar aquilo que idealizava. E o foguetão? Olhos esbugalhados, fixos no ecrã da televisão, vimos a gerigonça com a cauda vomitando fogo, rasgando os céus a uma velocidade louca, pousando finalmente, na Lua. Esta realidade é o fruto da aliança da inteligência do homem com os seus sonhos, o que fará que nunca acabará de inventar, criar e realizar.

Será que o astronauta ficou dececionado, quando poisou na Lua? Por um lado, festejou a enorme vitória que tal viagem significava para o mundo; por outro, talvez ficasse atónito ao olhar para ela, inóspita, cheia de crateras, bem longe daquela lua, vista da Terra, tão redonda, ar bonacheirão, sorriso maroto e cúmplice dos enamorados! Deceção ou não, o homem continuará a sonhar, a inventar, a concretizar….

Acabada a visita, voltámos ao «cubículo», onde lemos o poema «Pedra Filosofal», já com uma certa facilidade de compreensão.

Por favor, não fiquem perplexos com algumas más interpretações dos desenhos do mural! Desculpem tanta interrogação, mas quisemos dar, a cada uma das intervenientes desta visita, a sua sonhadora interpretação!

Lembrem-se, também, que … quando um SÉNIOR sonha, o mundo pula, ou melhor, saltita e avança….. 












 


 
 

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

BALADA DA NEVE : recordações


 De ALZIRA SILVA

Era um dia de inverno, triste, nublado, gélido, como todos os dias desta época do ano, na cidade da Guarda. Foi nesta cidade que fiz a minha carreira académica.

Hoje, vou recordar um episódio da minha puberdade. De todos os professores que tive, sem dúvida, simpatizei de maneira diferente com todos eles.

Vou falar da minha professora de português que, diga-se de passagem, não era da minha simpatia! Um dia, talvez, venha a justificar a razão...

Falou-se do grande poeta Augusto Gil que, não sendo natural da Guarda, aí passou a maior parte da sua vida. Falou-se de múltiplas coisas, da sua biografia, não esquecendo o poema que o imortalizou: «A balada da neve». Eu, nessa altura, adorava ouvir histórias que bebia com ansiedade e refletia muito sobre tudo o que ouvia! Foi o caso. Depois, para grande surpresa minha, vim a saber que havia no meu liceu um seu familiar!Fiquei muito surpreendida ao saber que o homem encarregado de tocar a cabra, no início e no final das aulas, era da sua família!Sim, a cabra, uma sineta puxada por uma corrente, que todos os alunos desejavam ouvir, principalmente no final das aulas, ou não fosse a brincadeira o que mais nos preenchia, nessa altura!...As campainhas atuais, são já fruto da civilização dos novos tempos!

Pois, a dita professora, que para mim tinha pouca simpatia, mandou-nos decorar «A balada da neve», para ser recitada por alguns alunos, na aula seguinte. Por fim, disse-nos: « O escritor está sepultado neste cemitério junto do liceu, espero que vão lá e me transmitam o que leram no seu mausoléu.»

 Eu, como curiosa e deslumbrada com a Balada da neve», fui com mais três colegas ao cemitério. Eram elas: a Natércia, a Maria Alice e a Ana Maria. Surpresa, das surpresas: logo à entrada, do lado esquerdo, erguia-se imponente um mausoléu, austero, cinzento, de um granito escuro, onde se lia, no topo, a seguinte frase:

« E a pendida fronte, ainda mais pendeu, e a sonhar com Deus, com Deus, adormeceu» Augusto Gil

Fiquei sem palavras! Olhámos umas para as outras, senti um arrepio e recordo-me do que me veio à memória nessa altura. Como este homem pensava na morte!… Eu, só nessa altura pensei nela verdadeiramente.

Na aula seguinte, levei a «Balada» na ponta da língua. Inspirou-me profundamente e pensei nas crianças da minha aldeia, que em pleno inverno, tiritavam com frio e com fome, por aquelas ruas tortuosas, mal agasalhadas, e por vezes descalças… Na minha imaginação,  via-as com os pezinhos descalços, sem força para os levantar daquela neve, que habitualmente caía, nos dias tristes e cinzentos do inverno. Sempre fui muito sensível à miséria! Ainda hoje, aquela poesia  me comove profundamente!

Mas, voltando à aula, fui a segunda a declamar.  Fiz um esforço incalculável para manter a voz clara e percetível, pois, à medida que lia, a voz embargava-se e as lágrimas teimosamente rolavam pelas minhas faces! A professora, olhou para mim, e apercebeu-se da minha emoção!…Sem me criticar, puxou-me para ela e beijou-me na face!

Nunca mais me esqueci desta sua atitude! A partir daqui, comecei a ter dela uma outra opinião. Também se sensibilizou com o meu estado de espirito...  Depois de outros declamarem, mandou-nos falar sobre o escritor. Eu recordava-me apenas de algumas coisas ditas por ela, na última aula. Foi advogado e poeta. Passou a maior parte da vida na cidade da Guarda . Licenciou-se em direito em Coimbra e, de todas as suas obras , a que o imortalizou foi a « Balada da neve». Também me lembro de ter falado em outros poemas, um que escreveu dirigido à mãe, também me sensibilizou…

Mais tarde, debrucei-me mais sobre a  sua obra. Considero-o melhor na poesia do que na prosa. Foi um escritor com uma poesia simples, inspirada nas paisagens da sua «Sagrada Beira», como ele lhe chamava, e na vivência das pessoas daquela zona. Tudo lhe servia de inspiração para elaborar poemas lindíssimos como «Luar de Janeiro», onde está inserida a « Balada da neve».

 
.Além de poemas, escreveu crónicas. Apreciei sempre mais a poesia! Há letras suas que ainda hoje se cantam em alguns fados.

Finalmente, vim a perceber que os versos que encimavam o seu mausoléu foram tirados de uma  obra sua, «Alba Plena», onde ele pretendeu relatar a vida da mãe de Jesus, sendo os dois últimos versos desse poema, o seu epitáfio do cemitério da Guarda  «E a pendida fronte, ainda mais pendeu, e a sonhar com Deus, com Deus ,adormeceu» .

Eu, como beiroa, sinto-me orgulhosa pela obra do poeta, que tanto admiro, não só pelo meu espírito bairrista, como pela minha sensibilidade humanista.



 
BALADA DA NEVE
Augusto Gil

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
– e cai no meu coração.
Luar de Janeiro
 
 
Augusto Gil








Augusto César Ferreira Gil nasceu em Lordelo do Ouro, Guarda, no dia 31 de julho de 1873, e faleceu em Lisboa no dia 26 de fevereiro de 1929. Estudou inicialmente na Guarda, donde os pais eram oriundos, e formou-se em Direito na Universidade de Coimbra. Começou a exercer advocacia em Lisboa, tornando-se mais tarde diretor-geral das Belas-Artes. Na sua poesia notam-se influências do Parnasianismo e do Simbolismo. Influenciado pelo lirismo de António Nobre, a sua poesia insere-se numa perspectiva neorromântica nacionalista.
Obras poéticas: Musa Cérula (1894); Versos (1898); Luar de Janeiro (1909); O Canto da Cigarra (1910); Sombra de Fumo (1915); Alba Plena (1916); O Craveiro da Janela (1920); Avena Rústica (1927); Rosas desta Manhã (1930). Crónicas: Gente de Palmo e Meio (1913).
http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/agil.htm
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