terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Depois de "O Alienista" de Machado de Assis


Saldo de leitura:
A nossa colega Elvira Carvalho prova, mais uma vez, que a sua pertença aos Vizinhos do Livro passa pelo prazer. O dela, recriando a partir do  lido e discutido; o nosso, ficando deliciados com o que escreve.

Machado de Assis também teria apreciado esta carta a uma das suas mais intemporais personagens.


 
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SENHOR SIMÃO BACAMARTE:



Apreciaria demonstrar-lhe que é com simpatia que lhe estou a escrever esta carta, mas creia que é bastante contrariada que o faço. O senhor, desde o início, sempre me infundiu uma certa repulsa, tanto no campo profissional como psicológico.



Acredita que, apesar do autor do livro informar o leitor que o senhor era um exímio médico, em mim sempre reinou a dúvida? A interrogação é involuntária. Não se trata de algo que eu escolha: interrogo-me, porque não consigo deixar de o fazer. Será que se formou mesmo em medicina? É que, no livro, nunca houve espaço dedicado a alguma cura que tivesse realizado, baseada no campo científico. A sua obsessão pela investigação sobre a mente humana, apenas tinha uma finalidade: enriquecer à custa daqueles que, fracos de espírito, acreditaram em si. E o seu torpe objetivo concretizou-se: mandou construir a Casa Verde com essa finalidade. Imagino esse maldito edifício de grandes janelas de guilhotina com grossas grades, largos parapeitos e portas duplas. Aí, encerrou mais de metade da população de Paraguaí, engrossando, simultaneamente, a sua fortuna pessoal.



Psicologicamente, o senhor era um terrível ditador: olhar inquisitivo, mente acutilante, de palavras secas, usou um sorriso enfático e as suas idiossincrasias para manipular os outros que julgava serem inferiores. Os seus segredos escondiam-se dentro de providencial silêncio.



Quando se sentiu encurralado pelos seus antagonistas, o senhor abriu as pesadas portas da Casa Verde que, rangendo, deixaram passar, novamente para o mundo, todos os que, traiçoeiramente, foram feitos prisioneiros por um homem desprezível, esse sim, mentalmente doente: o senhor Simão Bacamarte. Dessa vez, fez-se silêncio à volta da Casa Verde, embora na sua cabeça, vislumbrasse assobios e apupos.



Fiquei, no entanto, aturdida pela sua total ausência de arrependimento, vendo que, num gesto teatral e perante o espanto de todos, se encerrou na Casa Verde a pretexto de que ia tentar descobrir o remédio para a sua loucura pois, afinal, o alienado era o senhor. Levou, de certeza, consigo a última ligação ao mundo exterior: os velhos livros, onde horas e horas a fio se debruçara sem, afinal, obter resultados de tão «penoso» estudo!



Deixe, sr. Simão Bacamarte, vaguear a minha imaginação: vejo-o a calcorrear os corredores frios e húmidos da Casa Verde, com passos lentos, pesados e medidos, transportando debaixo do braço um velho alfarrábio. Sinto o seu sorriso relutante, irónico e sobranceiro, a sua pose distante fortalecida pela ausência dos que o senhor apodava de medíocres, imaginando que seria possível fugir para uma outra longínqua vila brasileira, onde pudesse refazer a sua vida, voltando a realizar as suas frustradas experiências e conseguindo enriquecer novamente.



Contudo, Machado Assis, talvez mais humano que eu, e querendo anemizar a sua personagem, deu-lhe um digno fim: a morte após dezasseis meses de isolamento.



Porém, se há vida para depois da morte, como muitos crêem, eu vejo-o ser recebido, efusivamente, por Satanás que o lança para o fogo resplandecente do seu reino. Para minha vergonha, sinto uma pontada de remorso, misturada com alívio. Sou trespassada por um inesperado relâmpago de medo. Subitamente, o coração sobe-me à garganta, afunda-se no meu peito e fico aturdida: ali, na minha frente, no meio das crepitantes labaredas, vejo-o altivo, os seus frios olhos chisparem de ódio, a fixarem-se em mim e, com um dedo inquisidor, apontar na minha direção, vociferando:



- ORA AQUI ESTAVA UM ÓTIMO EXEMPLAR PARA EU ENCERRAR NA CASA VERDE!!!

Estonteada e aterrorizada subscrevo

 Elvira Carvalho » 

 
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Boas Festas.
Luminoso Solstício a toda a gente que participa e apoia os Vizinhos do Livro.
Até 2018, a iniciar  com a leitura de duas crónicas de Carlos Esperança.