domingo, 17 de abril de 2016

O FANTASMA DO PASSADO


Com este  texto, propõe-se  a nossa colega Elvira dar continuidade à  passada leitura de dois contos de Mário Dionísio, extraídos de O Dia cinzento :  "Assobiando à vontade " e "Com os sapatos da irmã".

Estamos sobretudo no domínio da escrita recreativa. Haverá certamente outras propostas, dentro do grupo de leitores.
Até à nossa próxima sessão, a 27 de abril.



 
 
 
O FANTASMA DO PASSADO

O elétrico avançava lento e roufenho, transportando à pinha a multidão saída dos empregos, ansiosa por chegar ao aconchego do lar.

Ele entrou e, perante o espanto geral, furou por entre os passageiros, sentando-se no único lugar vago – o banco dos palermas.

Angelina olhou – o e reconheceu-o. Com um esgar irónico, pensou que o nome do banco assentava às mil maravilhas no homem que, com indiferença, se sentara nele.

Fernando mirou, de soslaio, a gaja refastelada a seu lado e agitou-se com impaciência. Quis comprimir-se para não tocar nas generosas adiposidades da mulher e, para isso, cruzou a perna. Até ali, no miserável banco do elétrico, se sentia inferiorizado. Fora assim toda a sua vida!

Olhou em  redor . Reparou numa mulher que o olhava insistentemente, com um sorriso nos lábios, cruzando os braços sob o peito avantajado. Não a reconheceu e, com desprezo, concluiu:

 «Alguma reles pega que tenta um engate!»

A sua paragem aproximava -se. Levantou-se e, ao passar pela mulher, ouviu-a articular com esforço:

- Menino Fernando… senhor Fernando, lembra-se de mim? Eu sou a Angelina… a filha do guarda do hospital.

Fitou-a com incomensurável rejeição. A sua vontade foi cuspir-lhe na cara para extravasar o sofrimento inaudito que tivera na infância e juventude.

Afinal, Angelina entregara-se ao velho astuto, em troca de uns meros chocolates e a ele que, com volúpia a desejara, mostrara-se arredia a aproximações, chacoteando  dele.                                                            .     
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Sentiu falta de ar e afastou-se, ignorando-a. O regresso das recordações da sua infância era como lanças que se cravavam no meio do peito. Nunca fora capaz de perdoar a crueldade do pai, do amigo, dos colegas, da Angelina…

Saiu do elétrico sem sequer voltar a olhá-la e caminhou taciturno pela rua. Uma onda de ódio eclodiu no seu peito e desejou vingança sobre o velho ancião que o zurzira com o cinto, sentindo uma lasciva alegria ao imaginá-lo, agora indefeso, a gotejar suor pela testa enrugada, sem se poder defender do carrasco, indiferente ao seu pedido de misericórdia.

Como era possível, passados tantos anos, que a presença de Angelina lhe avivasse o sofrimento, que julgara adormecido no seu subconsciente?

Subitamente, sentiu uma ferroada no peito, a respiração entrecortou-se e cambaleou. Caiu desamparado e, através dos seus olhos nublados pela dor física, viu os transeuntes rodearam-no. Mesmo no fim da vida, desorientado e assustado, pareceu-lhe ver num deles o pai cruel e de difícil trato, mostrando-se inflexível a castigá-lo à cinturada; noutras fisionomias, imaginou o escárnio e a humilhação que sofrera, num dia já longínquo, ao atravessar as ruas da sua terra natal, lacrimejante e cabisbaixo, calçado com as velhas sandálias de salto alto da irmã – castigo imposto pelo pai.

Nada mudara! – pareceu - lhe. A dúvida estampou-se no rosto empalidecido. Desejou a morte com veemência para se sentir, finalmente, liberto de tão profundo sofrimento.

Arquejou, deu o último suspiro e a cabeça caiu inanimada no passeio da avenida!

O «Cagarolas» morrera! Nem mesmo, no fim da sua vida, fora competente em ter quem chorasse por ele.

Pela sua face já lívida, a última lágrima rolou tardia e teimosa!

Elvira Carvalho