sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

OS NOSSOS GATOS






 
Primeira sessão dedicada a Doris Lessing.

Sim, sim, também ouvimos dizer que morreu há pouco, e foi prémio Nobel. Só por ter escrito sobre gatos? Claro! Também escreveu sobre outros assuntos.

Depois de lermos um capítulo de Gatos e mais gatos (Cotovia), passámos às histórias dos nossos bichanos. Aqui seguem algumas. Outras virão.

 

1.

PARECIAM DOIS REBUÇADOS

 

A do rapazinho, quatro cinco anos, solitário descobridor de um ninho da gata Pirreta, a um canto da capoeira, na quintarola da avó. Três recém-nascidos, olhos fechados, num débil queixume por falta da teta materna.

Repara nas cores. Dois pretos – por onde andaria o gatarrão preto lá de casa? Esconderam-lhe que morrera de velho –, outro malhado: branco e castanho.

Tem uma ideia: levar consigo os pretos. De modo a que a mãe só se aperceba quando chegarem a casa. Assim, ela não recusará. Levá-los como?

 
Ali está. Deita mão a umas folhas de jornais - jornais velhos com que se acondicionavam, numa cesta de verga, os ovos para venda. Retira os dois gatitos, enrolando cada um na sua folha. Aperta bem nos extremos. Sorri: pareciam dois grandes rebuçados! Protestam os bichos, espera que se calem.

Nisto, chamam-no da rua. Responde que estava a ver as galinhas e os coelhos; nada sobre os gatos. Insistem. Corre ao chamado.

- Temos de ir para nossa casa - diz-lhe a mãe.

Reentra na capoeira, buscar os embrulhos. Logo sai, num berreiro:

- Matei os gatinhos!

- Quais gatinhos?! – Perguntam-lhe.

 
2.TARDIO SONETO

 
Agora, a gataria da D. Irina. Ou era Irene? Já partiu para o irreversível, pobre velhota. Depois de, cada vez mais vagarosa, ter vindo almoçar ao Centro de Dia, durante uns anos.

Empurrava a bengala, emaranhada em sacos, onde tudo – chaves, dinheiro, documentos, papelada - se extraviava, menos os dois álbuns. Um, referente aos seus gatos; o outro, a Sua Santidade João Paulo II.

No dos gatos, figuravam registos biográficos, cadastros comportamentais, anotações sobre macacoas, sestros, prémios e castigos. Fotografias. Também poemas, devidamente datados e endereçados. No do Papa, arquivavam-se recortes de imprensa, desde a subida do fumo branco até ao óbito do pontífice, incluindo os primeiros rumores de milagres. D. Irina não perdia o jornal diário.

 Houve quem a convidasse para as nossas sessões de leitura: D. Irina ficou-se pelo nim. A vir, seria para nos deliciar com os sonetos aos seus meninos gatos – sua única companhia. Sonetos ao Carrapiço, ao Bicó, à Gaitinha… A muitos, diversos nas cores e raças; diferentes no temperamento.

 A Gaitinha, essa então… Cala-te boca. Mal e depressa: uma estouvada. Teimava em passar as noites na varanda, conseguia, pelo algeroz, esgueirar-se para o telhado; recusava, quase sempre, o colo da dona. Queixas e mágoas.

 Estranhavam as visitas da D. Irina o seu progressivo desafeto pela gata. Porquê? Sujava, desarrumava, arranhava paredes móveis e roupas tanto como os outros; não pesava mais nas canseiras da empregada da limpeza. Estranhavam a discriminação, a rispidez de uma senhora sempre tão tolerante para com o resto da bicharia. E pressentia-se o pior.

Um dia, D. Irina desabafou com uma amiga:

- Já me falta a paciência para as madurezas da Gaitinha, se ma quisesse levar para a sua terra…

Metida numa alcofa, com abono de comida, foi-se a repudiada, na mala de um carro, até uma aldeia do concelho de Vila Real. Deus te leve!

 
Ó Santa Liberdade! Campo aberto, mato, pedras, pássaros, lagartixas, ratos. Pinheiros. Sobretudo, malteses desconhecidos, rústicos e repugnantes à primeira vista. Chochos na conversação, quando, ao amanhecer, partilhavam do mesmo raio de sol; do mesmo balanço sobre um ramo de pinheiro. Mas - ai! -, em breve,  derretidos apaixonados. Rabos a pino, bigodes em riste, Ansiosos por trocar pulgas com a Gaitinha. Pois tire-se o corpinho da miséria, que a vida são dois dias.

 Apesar da distância, entre Rio de Mouro e Vila Real, depressa os ecos daqueles regabofes vieram inzonar a D. Irina. 

Nada que não se esperasse; sempre o pelo da Gaitinha lhe puxara para o pecado. Deus Nosso Senhor lhe perdoe. E contudo, tanto mais que o bom aspeto da gata merecia elogios dos mensageiros, D. Irina sentiu-se fraquejar.

- Está dada, está dada. Seja feliz à sua maneira…Mas não gostava de morrer, sem lhe fazer umas festinhas.

 E fez.

Viajando primeiro de comboio até Braga, no dia seguinte, sacolejou-se D. Irina, num autocarro para Vila Real. Entre horários de enlace, alcançou, numa corrida de táxi, a aldeia da Gaitinha

Deus seja louvado. Agora sim, num pulo, a gata veio aninhar-se no peito da dona. Linda, tão fofa e carinhosa.

Brevíssimo, porém, o encontro. Sempre escasso o tempo do amor. Que o autocarro não esperava.

 D. Irina despediu-se, em lágrimas, com a promessa de mandar um soneto especial à sua Gaitinha. Afinal, para ela nunca lhe chegara a inspiração.

 
E mandou mesmo, pelo correio.

Acreditem ou não, na véspera de chegar a carta, o diabrete da gata, fisgada numas guelras, foi atropelada pelo carro do peixeiro.

 Falta aqui o tal soneto. Temos de nos conformar.

 

3. NÃO ARDEU A CASA

 

Vamos agora para o distrito de Portalegre. Havermo-nos com um tal maltês, gato de ninguém, um diabo. Fica o aviso.

 «A minha mãe vivia sozinha numa grande casa, de rés-de-chão e primeiro andar, no campo. Praticamente, só se servindo do piso térreo; evitando andar escada-abaixo-escada-acima. Tempos houve em que aquela casa nos parecia pequena, antes de cada um de nós seguir o seu destino.

 Não tinha eletricidade. Ao pôr-do-sol, minha mãe nunca se esquecia, por muito que a escada lhe custasse, de ir acender o candeeiro a petróleo do primeiro andar. Companhia, sinal de vida, talvez evitasse assaltos.

 Uma noite, deita-se a minha mãe, cedo como de costume, para cedo se levantar na manhã seguinte.

 Um primeiro estrupido.                                                                                        

“Olá, ratos. Se tivesse cá um gato, isto não acontecia.”

 Voltou-se para o outro lado da cama

 Nova inquietação: não se lembrava de ter ido acender o candeeiro. Que cabeça a sua…

 Subitamente, um forte estrépito, pelo corredor de cima.

 Pobre mãe, convencida de que tinha ladrões em casa. Por quem gritar? Quem lhe podia acudir?

 Mas o que era aquilo, Deus do Céu?

Um gato!? Um gato assanhado em casa?

Raivoso: miava, rosnava, rugia.

Sem ter por onde se escapar, uma fera no fojo. 

Vidros partidos, um peso rebolando pela escada. O candeeiro! Fogo!

Coragem não faltava á minha mãe, morrer por correr…

Apressa-se, para a porta da rua. Terá tempo de gritar por socorro?

Não chegou a tanto. Mal abriu uma nesga da porta, escapou-se o gato. Deixando-lhe, num braço, um profundo arranhão. Malvado!

 Por sorte, a minha mãe tinha-se mesmo esquecido de acender o candeeiro. Escorrera petróleo pela escada, empapara-se na passadeira. Felizmente a casa não ardeu.»

 
4          A GRANEL – GATOS E NÃO SÓ

 4.1

A PELE DOS BICHOS

Se todos fossem como a D. Irina, não viria mal ao mundo.

Mas quem pode tolerar que se esfole um animal vivo, para se obter uma pele brilhante, de modo a valer mais dinheiro no mercado?

Deu num programa de televisão, sobre a indústria de peles. Salvo erro, na Rússia.

 Passou-se um caso desse para os lados de Santarém. Dois caçadores frustrados, quando lhes fugiu da mão um texugo. Esperteza. O bicho tinha compreendido que o iam anestesiar, para depois lhe soprarem a pele e meter a navalha.

Salvo daquele martírio, o texugo deambulou, ainda alguns anos, pelas redondezas, e sabe-se que sobreviveu a um dos seus verdugos.

 
4.2  CÃO VELHO NO ARAME

Vi uma vez uma mulher a puxar as patas de um cão, pendurado no ramo de uma figueira.

Encarregada pelo marido, a mulher enforcava o animal. Com um arame. Todavia a execução demorava, porque o fio era pouco corrediço.

Fora um excelente cão de caça; envelhecido, pouco rendia para o muito que comia. Na opinião do homem da casa.

 Logo que o animal deixou de estrebuchar, a mulher soltou-o do arame. Enterrou-o numa cova, ao fundo do quintal. Depois, foi arrumar a enxada e acabar o almoço. Não demoraria muito, o seu homem.

 4.3  CADELINHA E ESTIMAÇÃO

Olhem que nem toda a gente trata os animais de companhia com tanta malvadez. Conheço uma família de Pernes que adorava a sua cadelinha. Quando esta se finou, prestaram-lhe uma bonita homenagem. Mandando construir, no jardim da casa, um monumento funerário.

 4.4

DINHEIRO PARA UM CACHENÉ

 

Outra da minha meninice. Esta passou-se, também, com a mãe da menina tardia no andar!

 

Dizia o povo que trazia azar, quando um gato lambia o leite bolçado por uma criança de peito. Secava o seio da mãe, não resistiria a criança. Era um medo daqueles tempos.

Só o abate do animal podia evitar tais infortúnios.

Por causa destas crenças, fui encarregada por aquela senhora de ir atirar com um gato, metido num saco de linhagem, para a fossa da casa.

- E o bicho morreu?

- Se morreu? Olha qu’ essa, morreu e morreu mal, coitado.

Deste modo ganhei o meu primeiro salário. Cinquenta escudos, pois era dinheiro. Com isso comprou-me, então, a minha mãe um cachené – é assim que se diz ou não? Um bonito lenço branco com bordados; por quarenta e sete mil e quinhentos. Ou seja: sobraram vinte e cinco tostões; deram para comprar uma caixa de lápis de cor. Um luxo.

4.4   “Leva cá uma malha!”
 O meu pai também se desfazia das ninhadas, indo deixá-las numa mina, dentro de um saco. Que desgosto para mim.

Saía ele de casa, logo eu, seguindo-o de longe, via onde deixava a carga…Ah pois claro, desatava o saco.

Mesmo com a ameaça do meu pai:

«Se eu sei quem foi soltar os gatos, leva cá uma malha!»

 

5 REGRESSOS  
 Até agora nunca aqui falei da Nina, a minha gata, vem a calhar:

Lembram-se de quando estive umas semanas no lar? Pois voltei, e espero andar por aqui muito tempo. Também gosto muito de vocês, tenham a certeza. Ah, a minha gata…

Companheira, desde 24 de abril de 1999, nunca conheceu outra casa.
 Na minha ausência, o animal também se ressentiu. Ambos sozinhos, cada um no seu canto.
Voltei, felizmente. Fez-me uma festa. Ficámos comovidos, a minha filha e eu.

«Anda cá, Nina!
Entretanto, não percebi o que sucedeu. Se, antes, a gata vinha deitar-se aos pés da minha cama, tal como continuou a fazer durante a minha ausência, naquela noite não parecia a mesma. Onde se teria metido o animal?

No dia seguinte, nenhuns sinais; cheguei a pensar que desaparecera de vez. Por eu ter voltado? Passei ali um mau bocado. Então?
A minha filha tranquilizava-me: a Nina estava demasiado agarrada à nossa casa, não iria fugir. Tínhamos de saber esperar.

Trouxe-a a fome, dois dias passados.
Termino com a pergunta: por que razão o animal me recebeu com tanta satisfação, se me virou logo as costas por dois dias?

                   Encontro de palavras, com Armando, Idalina, Joaquina, Conceição, Josefa e JB