quinta-feira, 15 de novembro de 2012

HISTÓRIAS D' AMENA - 2

Por que nos rimos?


Com esta crise, nem me ocorre resposta para tal. Então, por que nos rimos? De que nos rimos? Quase sempre da desgraça alheia. Ainda ontem, do velhinho da minha escada caído em frente do talho. Com as calças molhadas. A pedir que lhe fossem chamar a namorada – vejam só, a namorada! - que viria por certo levá-lo para casa.. Coitado, sempre todo mijadinho, sem ninguém, vive na maior das solidões. De que nos rimos? Eu sei lá!

Pensando melhor… Donde é que me chega agora esta, passada com a minha avó? Vem lá dos verdes do meu Gerês, só podia ser, e tem uns setenta…upa, mais de setenta e cinco, que eu ainda nem ia à escola.

À janela.
Eu à janela, num Outubro frescote, e a minha avó, em baixo, azougada, a despejar abadas de espigas de milho no lajedo do pátio. Era preciso que o grão apanhasse sol para não apodrecer no espigueiro. Esvaziava o avental e logo se ia a buscar mais.

- Avó, avó, quer ajuda?
- Quero que me desampares a loja, menina. Fica aí, estás aí muito bem.
- Mas, avó, eu posso ajudá-la, mesmo daqui da janela. Depois paga-me.
- Pago-te o quê?
- Não é com dinheiro, avó!
Assim que acabasse de espalhar o milho, subisse as escadas para me fazer as tranças e chamar a sua lindinha. Era um mimo.
Trato fechado.

Não parava de trazer abadas de milho, de dispor as espigas, sempre às arrecuas, desde a casa até à levada.
Sem que a minha assistência faltasse:

- Pode deitar mais, mais, pode recuar, avó. Não precisa de olhar para trás.
Pelos vistos a minha avó aceitava a guia, e até trabalhava mais depressa.
            - Recue avó. Vá, recue.

Enfim, chegava com a última abada:
- Recue, avó, recue…

O resto já se está a adivinhar: tinha-me esquecido da levada ao fundo do pátio. Pobre avó! Faltou-lhe o chão…

Vejo-a de costas, a esbracejar na água:
            - Diabos te levem, rapariga!
Que Deus lhe perdoasse o praguedo.

Gritei por socorro, corri aflita a dar-lhe a mão. Ai a minha avó!
Mas ao chegar à sua beira, por vê-la erguer-se – parecia uma sopa – deu-me um ataque de riso que me remordeu pela vida fora.
- Pára de te rir, desmiolada.


Pior do que aquele banho, foi ter continuado a trabalhar sem mudar de roupa. Só durou mais umas semanas.

Agora digam lá vocês o que vos faz rir.


Histórias ouvidas à D. Amena. Registo de Joaquim Beja
Rio de Mouro, Julho 2012

HISTÓRIAS D' AMENA - 1

PERDIDOS E ACHADOS


O Grupo terminava a leitura de A carteira do Machado de Assis.

- Daqui, quem é que já encontrou uma carteira?

Entreolharam-se. Ah, a Emília sim, em cima de uma mesa de café: mal a viu, veio o dono e nem deu tempo para se pôr com as quimeras. Quais? As quimeras da personagem do conto brasileiro. Admite tratar-se de uma não-história. Tal qual os políticos, quando esquivam resposta a jornalistas impertinentes, declaram do alto da sua solenidade que tal matéria é um não-assunto.

- Assim sendo, têm de me ouvir contar como, por ter achado uma carteira, acabei por ficar sem um jornal…
…?
 - Sim, um jornal; guardei-o durante anos, por vir lá tudo tintim por tintim, até com o meu nome completo. Perdi-lhe o norte na mudança de casa. Foi uma mágoa, embora tenha muito mais pena do rapazinho…

Então cá vai.
Morava na rua dos Açores e ia, às quintas-feiras, costurar a casa de uma senhora ao Jardim Constantino. Saiu de casa e lá estava, a pedir que a apanhassem, a carteira, caída à borda do passeio. Ninguém nas imediações, certificou-se. Baixava-se de mão estendida, quando ouviu uma voz rófia: «Ó vizinha, eu já tinha visto isso …»
Donde lhe surgia aquele? Pisou a carteira com os dois pés, não havia de ficar logo sem ela.
«Vossemecê caiu do céu?»
«Olha agora do céu, estava a fumar ali à janela do segundo andar.»
 Topara a carteira porém, e por azar, a vizinha chegara primeiro. Agora tinham de apurar o recheio, havendo valor, rachassem ao meio. Senão…
Fez frente ao homem: Senão o quê? Primeiro não era sua vizinha nem o conhecia de parte nenhuma. Onde morava o figurão ali na rua? Quanto ao resto, não arredava um palmo, se ele insistisse, gritava, certa de que viria gente em seu socorro. Nada tinha a esconder, e muito menos intenção de ficar com uma coisa que lhe não pertencia. Então não é que estava mesmo a barafustar?!
 Por isso se abriram janelas, espreitou gente. Sentiu apoio para continuar o desafio.

A questão tinha de ser resolvida noutro local: ela iria entregar a carteira à polícia, fizesse o outro como entendesse. A uma vizinha que lhe perguntou se tinha coragem de ir até à esquadra com aquele fulano, esclareceu que tinha no saco os precisos para se defender. Estava a pensar na tesoura, sem desejar que se chegasse a esse extremo.

Pôs-se a caminho, deixando o homem abismado no meio da rua, sem dar mostras de querer acompanhá-la. Porquê? Olá! Não lhe cheirava entender-se com a polícia?

Confiou a carteira à autoridade, mas exigiu assistir à conferência do conteúdo, confirmando que, além de documentos de identidade, papéis e fotografias, havia quinhentos escudos. Bom jeito lhe fariam, se fossem seus. Logo se arrependeu da ideia. E foi-se ao trabalho. Afinal, o graduado da polícia parecia dar mais importância a uma papeleta militar do que ao dinheiro. Repetia: «Olha a sorte deste gajo!», não explicando as razões.

No sábado seguinte, como de costume, passou pela padaria, levando uma tachola de barro com peixe temperado. Por favores do dono, algumas pessoas iam ali assar comida no forno. Desse modo veio a saber que a carteira era, afinal, pertença de um ajudante do padeiro.
Passaram por ele horas de amargura: perdera ou tinham-lhe roubado a carteira? Com a guia para se apresentar no quartel? Que ventura ter sido encontrada por uma freguesa da padaria!

Pois não, não acaba aqui a história. Natural de Arganil, o jovem estava mobilizado para a Guiné. Partira nessa madrugada de sábado a fim de se despedir da família, Na viagem, a ocorrência da carteira alcançou a redacção do semanário local.

Mesmo sem nunca se ter cruzado com a achadora da carteira, o moço padeiro mandou entregar-lhe, através do patrão, um exemplar de A Comarca de Arganil, Reconhecimento de uma boa acção, em letra de imprensa.

A partir desse ponto, só caem desgraças: Poucos meses passou o soldado na Guiné, vitimado por uma granada. Como se não bastasse, o tal jornal, quase religiosamente guardado, extraviou-se, quando a contadora da história veio morar aqui para Rio de Mouro.
- E por cúmulo, nem já sou capaz de atinar com o nome do rapazinho. Coitado, Deus o tenha!



Histórias ouvidas à D. Amena. Registo de Joaquim Beja
Rio de Mouro, Julho 2012