quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Lugares da memória



 De quem? De quê?- nos lugares da memória. A magia da descoberta,  a utopia do regresso, a erosão do tempo. 

"Tudo é seco e mudo; e, de mistura,
Também mudando-me eu fiz doutras cores.
E tudo o mais renova: isto é sem cura!
"

Escreveu Sá de Miranda.
Os nossos textos, surgindo na sequência da leitura de  Saudades para D. Genciana, de José Rodrigues Miguéis, prendem-se com a reflexão final do narrador.....
São, ainda, modesta  escrita que não se conforma com o mero acto da leitura. Nem se pretende comparar com qualquer outra maneira de escrever. Somos nós, nós e os nossos sítios. Num tempo em que todos os sítios fluem, na galáxia do virtual.  
***
1. A surpresa
Josefa

A avenida Dr. Sidónio Pais em Lisboa situa-se no lado esquerdo de quem desce do parque Eduardo para a avenida Fontes Pereira de Melo. Faço este percurso com alguma frequência, normalmente em alternância com a zona centro pedonal do parque. Gosto de caminhar nela, porque tem pouco trânsito automóvel, me parece tranquila; sem lojas de retalho, elegante, com edificações arquitectónicas harmoniosas e diversificadas, sem prédios degradados nem grafitados. É limpa. Ainda tem como vizinha a paisagem repousante da encosta do parque, que a acompanha em toda a extensão.

Um dia primaveril, ameno, sol radioso, de 2013, surpreendeu-me o seu ar festivo. Vi que todas as árvores da avenida tinham explodido em flores, com um colorido forte e vibrante, do branco-pérola aos laranjas.
Esta avenida-jardim, nesse dia de encanto, convidou-me a olhar com mais atenção a maneira como as árvores estão podadas. Pela sua robustez, e adorno fez-me pensar na domesticação a que estão sujeitas. Parecem todas gémeas-verdadeiras, alongam-se pela  avenida  com a mesma cor e postura. Abençoados sejam os técnicos que as preferiram e os seus cuidadores; porque animaram os caminhantes como eu, a fazer dela o seu percurso preferido até à baixa lisboeta.
Não é a maior, nem talvez a mais importante e famosa das avenidas, mas, para mim, foi a que mais me surpreendeu, pela positiva, nos últimos tempos.
Rinchoa, 27/07/13


2. Se tivesse de regressar
Maria José

Se tivesse que regressar a qualquer lugar, seria, creio, a um pedaço de terra algures na Beira Baixa.
Nasci e cresci numa cidade que deixei, adolescente tardia e onde só volto se por um acaso se proporcionar.
Bem diferente é o pedaço de terra de que falei ; pequena propriedade de Família, próxima da cidade e onde íamos regularmente…fins de semana, férias.

E quando recordo, dou-me conta dos vários sentimentos que o dia e a noite no seu ciclo completo me proporcionavam e como igualmente as estações do ano me moldavam a alma…mas era ali que tudo tinha significado, que me sentia mais eu ; nem mais nem menos feliz, apenas diferente.

Seriam os verdes anos? O desconhecimento da mágoa? Ausência de sofrimento que a vida me poupou até então? Talvez.

Passados que são tantos anos e muito caminho andado, se recordo, é sempre num pedaço de terra, que me reencontro.

3. Seja onde for
Joaquina Faia Oliveira
 "Lembro-me como se fosse hoje do sítio onde nasci e vivi até aos 23 anos. esse local fica no Alto Alentejo na Vila de Galveias. As melhores recordações são da escola, da minha juventude, das noites quentes de verão onde me sentava à porta, ouvindo o cantar das cigarras e dos grilos. Também me servia de companhia o rádio, pois não tinha televisão.
Nessa altura descobri que precisamos de muito pouco para sermos felizes e que são as coisas simples da vida que nos trazem as maiores felicidades.
Hoje quando volto à terra nem sempre são boas memórias, é o recordar, que noutros anos partilhava da mesma casa  com pessoas que já não existem entre nós."

4.     E despeço-me com um olhar..

 M. Bravo
    
"Vim viver para Rio de Mouro no ano de 1975, para um apartamento que comprei a um amigo.
Quando entrei nesta rua, Bartolomeu Dias, gostei logo dela! Só tinha e continua a ter prédios de um lado; do lado oposto bonitas vivendas com lindos e cuidados jardins. Ao entrar no apartamento, no 3º andar fiquei fascinada com o que os meus olhos viam: uma paisagem lindíssima  para a bonita serra de Sintra. Encimada pelo majestoso Palácio da Pena que, há noite, iluminado, faz lembrar um conto de fadas.
Apaixonei-me por esta paisagem. Decorridos todos estes anos,  continuo a contemplá-la  com o mesmo agrado.
E ao pôr-do-sol! Vê-la desaparecer por detrás  daquela serra são momentos únicos. À noite, no verão, em fase de lua cheia, vou espreitá-la da minha janela, e despeço-me com um olhar..."
                                                                                                                    

5. A pequena aldeia
Ilda Guimarães                   

Ainda há bem pouco tempo me vieram à memória as férias passadas na minha pequena aldeia, perto de Vila Real, em Trás-os-Montes.
Com as minhas amigas, íamos frequentemente visitar os lugares mais belos que se possa imaginar na mente de adolescentes. Conseguíamos sentir o cheiro daquelas lagoas rodeadas de natureza verdejante, onde tinha acontecia de uma maneira mágica, tanto para nós como para os mais velhos.
Há pouco tempo, senti saudades de tudo aquilo que tinha sido a minha infância e adolescência. Por isso decidi, já com a minha família constituída, rever tudo, para que os meus queridos pudessem admirar.
No entanto, mal chegámos, tudo o que eu tinha visto, sentido e admirado já ali não existia. Os pássaros, os cheiros, as correntes de água… já não eram os mesmos. De tudo o que eu tinha visto e que continuava a recordar.
Rapidamente me apercebi de que não era só na minha aldeia que tudo se tinha dissipado, mas eu mesmo tinha mudado. Era mulher e mãe
Mas, sempre na esperança de que um dia possa voltar a ter a minha bela aldeia, o que não é possível, desejo apenas que esta fique na memória dos meus filhos para mais tarde recordarem.
Rio de Mouro, 26 Julho 2013


6. A laje já não existe
Idalina Gonçalves

Na minha infância! Era o local de encontro, onde eu ia com as ovelhas do meu pai; outras com os bois; e havia outra que tinha uma burra…Por vezes íamos todas montadas nela, no mínimo três ou quatro.
Essa laje ficava perto de um lameiro onde os animais pastavam. E nós fazíamos as nossas brincadeiras de crianças, com bonecas de trapos, confecionadas por nós.
Brincávamos “as comadres e compadres”, fazíamos os batizados. Aos domingos, levávamos de casa a merenda de pão com chouriço, presunto…preparada sem as nossas mães “verem”. Comíamos essa merenda como o melhor dos manjares. Depois, éramos comadres e compadres.
As saudades que eu tenho desses tempos, apesar de difíceis.
Hoje, essa laje já não existe, porque a passagem de uma estrada deitou tudo abaixo.
Hoje, quando lá passo, lembro-me da laje, das minhas brincadeiras, da laje que já não existe.
Mas existe uma amiga que é minha comadre de verdade, pois é madrinha do meu filho mais velho.
 

***

Concluiremos com estas sofridas  linhas de  Ernesto Sabato, mestre da grande literatura.


in Ernesto Sabato, Sobre heroes y tumbas, Barcelona: Seix barral, 2003. p.215

 

“Pois à medida que nos aproximamos da morte também nos aproximamos da terra, e não da terra em geral, mas antes daquele pedaço, daquele ínfimo (mas tão querido, tão saudoso!) pedaço de terra em que decorreu a nossa infância, em que tivemos os nossos primeiros jogos  e a nossa magia, a irrecuperável magia da meninice. E então recordamos uma árvore, a cara de um amigo, um cão, um caminho empoeirado à hora da sesta, com um ruído das cigarras, um riacho. Coisas assim. Não grandes coisas, antes pequenas e modestas coisas, mas que naquele momento que precede a morte adquirem uma incrível magnitude, sobretudo quando, neste pais de emigrantes*,  aquele que vai morrer  tem apenas para defender-se  a lembrança, tão angustiosamente incompleta, tão ténue e quase incorpórea, daquela árvore ou  daquele regato da infância; de que não só se está separado pelos abismos do tempo mas ainda por vastos oceanos. [… ]
Porque a memória é o que resiste ao tempo e aos seus poderes de destruição, é assim algo como a forma que a eternidade pode assumir naquele incessante trânsito. […]”
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Porque a memória é o que resiste ao tempo e aos seus poderes de destruição, é assim algo como a forma que a eternidade pode assumir naquele incessante trânsito. […]”

* Argentina.