quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

CIganos

Ciganos
Andámos pelos meses de Outubro e Novembro ocupados com a vida dos Ciganos. Tivemos oportunidade de partilhar, entre os Vizinhos do Livro, o que deles sabíamos, ou julgávamos saber. Coisas daquele povo, ocorridas, na nossa infância, pela  província, onde sobreviviam, ainda com mais dificuldades do que hoje.

 No  fundo de cada um ou uma, havia  sombras de estereótipos, qualquer que fosse a situação em que nos cruzámos com os nómadas. Apenas a Idalina insistia que nunca, na sua aldeia, os pais a impediram de brincar com as meninas do acampamento, montado nos arredores da sua casa.
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Entretanto, fomos lendo e comentando contos ciganos, coligidos por João Pavão Serra, em Filhos da estrada e do vento (Assírio & Alvim, 1986). Nenhuma destas narrativas mereceu menos atenção e comentários do que outros textos de autor, anteriormente apreciados no nosso grupo de leitura.


Por sorte, numa segunda sessão sobre a mesma temática, tivemos o privilégio de escutar o testemunho de alguém que, por razões profissionais, viveu o dia-a-dia com ciganos, em Bragança. Catarina Alves, técnica de serviço social, e durante alguns tempos colaboradora da nossa  Associação de Reformados, falou-nos da sua experiência. Começando por distinguir a origem étnica daqueles seus companheiros de trabalho, referiu-os como Gitanos, em alguns aspectos diferentes das tribos do sul de Portugal. Por exemplo, ao enviuvar, a mulher não veste de luto nem corta o cabelo.


Catarina Alves assinalou como foi ganhando a confiança e amizade dos utentes do seu serviço. Do apoio que lhes deu, por exemplo, nas candidaturas à habitação e ao Rendimento Social de Inserção. Particularizou também a importância  dos homens  na prestação de trabalho, as jeiras, para as autarquias. De outro modo, não haveria mão-de-obra recrutável para determinadas tarefas, na região.
Sobretudo, deu destaque a sua mediação entre crianças, adolescentes, pais e instituições escolares, num sistema educacional que nem sempre é tão inclusivo como seria desejável.
 Sendo mulher, foi confidente e conselheira em relacionamentos de género. Numa sociedade presa à ancestralidade, descobriu que as mulheres tomam a pílula às escondidas e os/as jovens começam a contestar os casamentos em que foram prometido/as, em criança, pelos pais.

Concluiu Catarina Alves, o envolvimento com esta comunidade alargou as suas competências e contribuiu para reduzir os preconceitos dos seus amigos e familiares.
Catarins Alves



Do maravilhoso  e da urdidura dos contos ciganos  ficou um estímulo. Logo houve quem tivesse também a sua história. A D. Conceição abriu a iniciativa; não só contou, como reclamou  fidelidade ao editor do texto.  Concluídas as negociações entre as partes, segue-se a  dona desta voz:
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Pai, corte esta corda!

O que por aí vai, ó senhor, escreva as coisas como elas foram. Como se passaram. Tal como lhas contei. Em que estava então a pensar? Na cigana?

 Ora essa, a cigana veio por seu convite. Não, não insista, a cigana - a cigana dos pentes, como lhe chamou - vejam bem, não foi tida nem achada na minha história; que eu até nem história lhe quero chamar. Diga-se, foi uma coisa muito simples “de uma menina com atraso no andar”. Normal, claro que sim. Quem se pôs com invencionices sobre anormalidades? Sempre houve crianças a levantarem-se das gatinhas com menos de um ano, e lá vão elas, passinho curto e tremelicado…. A gente só tem que acrescentar: Deus te guie. E boa sorte para os caminhos da vida. Outras, andam mais tarde, é natural..

Estava certo, quando o senhor pôs na sua folha que eu tinha oito anos e uma amiguinha, para casa de quem corria mal saía da escola. Éramos vizinhas, não admira, conhecia aquela menina desde o dia em que saiu da barriga da mãe. Foi crescendo com saúde, bons cuidados, carinhos, aquilo de que uma criança precisa.

Tem razão, o meu pai era efectivamente o carpinteiro da aldeia, e foi ele quem pôs a menina a andar. Ninguém pensava que aquele atraso fosse mal-de-inveja, ou quebranto, onde foi o senhor buscar isso? Razões da cigana? Ai, valha-me Deus, então foi a cigana?... Cigana dos pentes? Qual dos pentes, qual carapuça, só por amizade lhe não chamo pantomineiro.

Já lhe disse: nenhuma cigana teve a ver com a corda. Sim, a que o meu pai cortou. Bem lhe expliquei, na ocasião, de que corda se tratava; isso mesmo, dos bois, uma soga, já agora, como se deve dizer soga ou assoga? Depende de quem fala?! Ora ainda bem.

Não sei quem instruiu a mãe da menina: «Manda destravar os pés da tua filha.» «Como?» «Enleias-lhe as pernas, desde os joelhos, com uma soga, atas entre os tornozelos…» A mãe tinha de deixar a corda de modo a que, ao fim, ficasse um espaço para o meu pai cortar.

Se cortou com a enxó?! E fui eu que referi tal ferramenta? Eu?! Então seja com a enxó, embora não me lembre de lhe ter falado, nem visto na altura, nenhuma enxó. Deixe-me pensar: a corda foi cortada com quê, Conceição?... Olhe, já não atino. Está bem, faz de conta que foi com a enxó.

Antes. Estou a ouvir a mãe da menina: «Ó Conceição, agora que já amarrei as pernas da minha menina, leva-a ao teu pai, que ele bem sabe o que deve fazer.» E o que seria, preocupava-me eu, que a mim ninguém explicara os porquês daqueles preparos. Só tinha de levar a menina ao colo. E dizer:
«Pai, corte esta corda.»
Se ele cortou? E por que não havia de?
A menina, mal se viu liberta, ergueu-se na bancada da oficina e deu dois passos, para se agarrar a mim. Os primeiros.
Mal chegámos a casa continuou a andar.
E pronto, até hoje.

A bem dizer, talvez eu lhe tenha falado de ciganas, apareciam lá pelas aldeias, agora essa da cigana dos pentes, com franqueza….

Bem sei que se passaram sessenta anos, mas o que seria se a menina, senhora hoje, e já reformada, entrasse agora por aqui dentro e perguntasse: «Ó São, que aldrabice foi esta? Onde é que tinhas o juízo, quando engendraste tal coisa?» Pior ainda, se fosse, amanhã, um extra-terrestre a pedir-me contas.

Desculpe-me, D. Conceição. Concordo consigo: a verdade acima de tudo.

Narrativa talqualmente me poderia ter sido trazida pela D. Conceição. Mas com os pontos nos iii.

Rio de Mouro, Novembro 2013

Conceição, com JB

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