domingo, 16 de fevereiro de 2014

Os gatos da Maria Amena


1.      Gato na garganta

Entro no Centro de Dia com uma história incómoda, ou seja, “um gato na garganta".. Muito a despropósito, pois vim para continuar a ouvir, não para falar de gatos. Todavia trago um arrebunho na voz. Espero que se atenue, com o sobe-e-desce da memória.

Não é de garra felina: trago comigo Pedro Gato, companheiro de brincadeira e briga, nas primeiras duas décadas das nossas vidas. Gineto das convenções sociais, genioso na eletrónica… Fanático dos automatismos, da velocidade.

Fora de causa. Sape, gato! Sape, história! Licença, apenas, para um pormenor: Pedro era apelido; Gato, alcunha. Pedro Gato, carbonizado, aos cinquenta, passava dos duzentos à hora. Derrapagem, explosão da mota.

Erro de cálculo, segundo os colegas universitários. Não se precatara com os primeiros escaldões da vida, concluíram os antigos companheiros de infância.

Assunto encerrado. Porque chegou a hora dos dois gatos da dona Maria Amena.

 

2.1 Sete anos de azar?

Sentamo-nos no refeitório. Terminou o almoço:  modorra.

Vibram tachos e panelas nas arrumações da cozinha. Atrás de Maria Amena, abancam as senhoras do bingo; nas minhas costas, o pessoal da sueca, quase sempre homens. Ao fundo, a televisão abrasileira uma novela, para duas adormecidas espetadoras.

As nossas histórias, a leitura e os livros são parceiros pobres, na recreação do Centro de Dia. Hoje, fluem da boca de Maria Amena, confinadas entre o pregão da mandadeira do bingo e as batidas secas dos descartes.

Sete anos de azar? Diz-se, não creio. Pelo azar tinha andado eu, primeiro ao volfrâmio, na serra da Peneda, uma garota, sem forças para revolver as pedras, carregar os pesos, por vezes doente, quase sempre mal alimentada. Mau passadio, sim senhor.

Melhorias vieram, algumas, finda a campanha do minério, quando fui com a minha avó para casa do meu tio, em Castelo Branco.

Saí de lá com dezasseis anos, e voltei para a veiga do Gerês. Estou daqui a vê-la, afogada nas águas, a veiga. E também a minha aldeia.

Aqui vai o primeiro gato, prepare-se… Oh, diabo, desculpe, está a cruzar-se na minha cabeça outra história, a dos “ É-gato-João!”. Sem tirar nem pôr, uma família da minha aldeia. Chega o homem a casa, sai-lhe a mulher do quarto, a acabar a trança. «Que barulho é esse, aí dentro?». Resposta não tarda, como se já estivesse preparada há muitos antigamentes: «É gato, João!»

Acreditou ele, o parrana. E logo o povo lhe colou a alcunha. Não sei se me fiz entender? Adiante.

Outra alcunha era a dos Limonadas. Por que  razão nunca soube. Lavradores como os É-gato-João!.Maria. Limonada, minha amiga, veio ao meu encontro com mostras de agrado:

«Há quanto tempo! Chegaste mesmo a calhar, Maria Amena. Preciso da tua coragem, já te digo porquê…»

Queria que eu a ajudasse a dar sumiço a um gato vadio. Daqueles que, como se diz, têm sete vidas. Metiam-no numa serapilheira, largavam-no fora da aldeia, logo o patife chegava a casa primeiro do que quem o fora despachar. Fecharam-no num cabaz, pediram ao condutor da camioneta da carreira que o deixasse para lá da Vieira, já nem sei a quantos quilómetros. Dois dias depois, estava o gato na aldeia, pronto para mais estragos.

Esperto? Esperto e a fazer de toda a gente parvos. Sempre que voltava, vinha pior, digo eu, pois o senhor não me perguntou, pior como? Mais feroz a retraçar criação. Galinhas com pintos eram um ver-se-t’avias: ao menor descuido, passava-lhe a ninhada pelos colmilhos.

Ora, porque não lhe davam um tiro? Ora porquê?! Por não haver homem para arriscar. Cortavam-se: quem é que queria amargar sete anos de má sorte, por abate de um gato, ainda que fosse aquele traste?

Sete anos de azar?! Não, nunca acreditei em tal coisa. Pensei: «Vamos lá acabar com este fadário, já que a Maria Limonada o tem bem ensacado.»

Demos-lhe por companhia um pedregulho, voltámos a apertar o saco e…zás! Atirámos a carga a um tanque.

 Apesar do lastro, o bicho teve forças para trazer o saco, por duas ou três vezes, à tona. Aquela agonia pode durar uma vida, na má consciência de quem a causou.

Tinha dezasseis, já cá contam oitenta e quatro –Escute,sou bisavó há dois dias! – mas até hoje não me queixo de azar.

2.2 O Fiquinhas

Este? Ai este era um ai-jesus. Mal abria os olhos, quando o levámos para a loja. Em Moscavide. Trabalhava de costura, Aí pelos inícios dos anos sessenta. Sim, Moscavide.
Os homens deixavam a província ao acaso, arranjavam trabalho na construção, atamancavam uma barraca para pernoita e, se a coisa corria a jeito, acabavam por trazer a família. Todos a morar sem condições, muito pior do que nas aldeias onde as ruas eram acamadas de mato. Havia ainda os barracões dos ferros-velhos, das oficinas de automóveis, ah sim, constava que se faziam por lá negócios com gatunagem.

Ciganos? Esses também por lá apareceram, trocando a venda dos cortes de terilenes pela de alcatifas para os apartamentos em construção. Depois haviam de mudar para as gangas e sei lá mais o quê…Ciganos!

Tem razão, Moscavide era a praça dos autocarros e mais uns arruamentos em obras. Mas crescia a olhos vistos. Cafés, tabernas… até uma casa de - como é que se diz hoje? De alterne.

Foi na praça de Moscavide que um compadre meu, desempregado de um grande fanqueiro da Baixa, montou uma lojeca de retrosaria. Como eu me dava bem com a mulher dele, fazia para ali uns biscates: bainhas, botões…Está o senhor a ver? Chegava a dormir lá, tinham uma cama nas traseiras da loja. A dormir com o meu Fiquinhas, entenda-se.

Cruzado de siamês. A mãe, pura de raça, era de uma freguesa da retrosaria, que quase se sentiu desonrada, quando a sua menina se enrolou com um gato da rua.

Daí que tivéssemos ficado com um lindo mestiço na loja. Os meus compadres também gostavam muito dele, mas era eu, era comigo que o animal se ligou mais. Benfica, batizou-o o meu compadre. Para mim, ainda hoje é o Fiquinhas.

Acredite que o animal andava completamente à vontade na loja, sem estragar nem desfazer nada. De tão meigo, deixava que eu lhe desse banho. E de uma vez bem precisava; passou quase uma semana fora de casa, enrabichado pela lua de uma gata. Viram-no nas traseiras de uma taberna, á porta da tal casa de alterne e nas barracas. Dali o trouxe, mal cheiroso, cheio de crostas, a pedir limpeza.

Aquecia água num fogareiro a petróleo, lavava-o e podia enxugá-lo completamente.Com uma toalha turca. Finda a toilete, vinha a parte sempre apreciada pela freguesia da loja.

«Então e o beijinho?» Indicava-lhe o sítio na minha cara: «Aqui!»

O gato começava por me tocar com o focinho. Eu pedia mais:

 «Festinhas, agora uma festinha à dona. Vá lá ver.»

Levantava a patita e passava-ma pela cara. Nunca lhe senti as unhas, parecia que calçava luvas de seda. Nem quando queria fugir do meu colo.

Às vezes, com uns miados dolorosos, reclamava o pastelinho do costume.

Pois comprava, comprava pastéis de nata para o gato. Ele lambia-se, mas só com o recheio; eu contentava-me com o resto.

O outro pitéu era o melão. Onde é que ele aprendeu tal coisa? Saltava para cima da mesa e comia, bocado atrás de bocado, uma talhada que eu lhe punha no prato.

Um dia desapareceu. Ninguém na vizinhança dava sinais dele.

Quase me envergonho hoje pelo muito que sofri, ao perder o gato.

Estaria o bicho a prever o fim do negócio? Porque o meu compadre não conseguiu aguentar a retrosaria. Falência, novo rumo.

Adeus, Moscavide. Fui morar numa parte de casa na rua dos Açores, sempre a trabalhar na costura.

Passaram-se pr’aí uns sete anos, e estes sim, sete anos de mágoa por ter perdido um gato – para mim não era um gato, era um príncipe perfeito. Já vivia aqui em Rio de Mouro, quando me telefonaram. Que sabiam onde estava o Fiquinhas. Em casa de uma senhora idosa, em Moscavide, como deve calcular. Corri  logo lá.

No entanto, olhe, primeiro, tive dúvidas: e se aquele animal não fosse o Fiquinhas? Embora parecesse o mesmo, sentia-lhe uma falta. Não se passa apenas com os humanos, os gatos também mudam. Nesta hesitação, abalou-me a súplica da senhora:

«Por amor de Deus, não me leve o gato. É a minha única companhia.»          

Ponha-se o senhor no meu lugar: o que fazia?

E eu? Pois já lhe digo. Num instante, compreendi que o Fiquinhas, o meu príncipe, se me varria da cabeça. Ficava liberta e curada de tal apego.

Despedi-me da velhota. Acabei. Mas deixe-me ainda acrescentar: quando começámos a falar dos nossos gatos, já mal atinava com esta história.

3. Nem tudo o que vem à linha

Cá está outra no basalto. Na semana passada, parado á porta de um restaurante, a S. Cristóvão, em Lisboa, esperava-me mais uma meada. Puxo e enrolo.

Declaro-me desde já coletor e reutilizador de todas as pontas de fio deixadas, na rua, pelos carteiros. Observem a velocidade a que eles ou elas sacam do malote um atado de correspondência, arremessam o atilho e se apressam na entrega. Quilómetros de excelente fio, desperdiçados por essa Lisboa, pelo país. Isto revolta um poupado da minha laia. Há dias em que volto a casa com duas ou três meadas no bolso!

Cá vem mais uma, do basalto! Puxo e enrolo, puxo…Alto! Prendeu? Sinto ansiedades de pescador: está a picar ou quê? Soltou-se novamente. Torno a enrolar. Logo volto a sentir a linha presa… Afinal de contas? Ah! Com que então?!

Na ponta caída, a dois ou três passos, quem se diverte à minha custa? Puro jogo: solta e prende.                                                                                                                                 

Finda a brincadeira, roçou-se na minha perna. Por ter chegado até mim, sem isco nem anzol, ganhou uma carícia. A troco da meada que guardei no bolso.

Quando, no dia seguinte, em casa, contei aos meus netos, a Sofia rematou:

- Que cena, avô! Tu pescaste um gato?!

- Um gato, Sofia?! – Espanto da Marta, acabando de chegar.

- Bom, era uma gatinha. Preta, com coleira cor-de-rosa, disse o avô.

Protestos do Tiago, quatro anos incompletos:

- Não, avô, ela pode comer o meu peixinho!

Maria Amena, JB e vários gatos