CONTO
Era Primavera; não muito diferente de outras.
Um tímido sorriso aflorava o seu rosto, ao contemplar aquele letreiro, na pequena montra, decorada com afectos e muita cor.
Serenamente, como só a idade e o muito viver permitem, abriu a porta e iniciou o ritual de todas as manhãs, tão de si já involuntário: tirar o casaco…pendurar a mala….olhar breve e de relance ao espelho decorativo com que brindara a parede frente ao balcão; fora comprado num daqueles dias em que vá lá saber-se porquê, acordamos com vontade de um mimo...coisas normais, mas que nos conforta, porque julgamos merecido!
Parou….o mesmo olhar para o relógio, 10 H, e então Mariana preparou-se para mais um dia ; clientes, na maioria senhoras, opiniões, às vezes elogios, aqui e ali uma confidência, muita solidão, ora envergonhada ora confessada e, pelo meio, ia vendendo uns sapatinhos de bebé: azuis, rosa, verde, amarelo…hoje era tudo diferente de antigamente…a cor já não era assim tão importante, tão obrigatória, quase ponto de honra; ainda bem que mudara…podia dar mais asas à sua imaginação e colorir, à semelhança de paleta de pintor, aqueles sinais de vida que iam despontando ao longo do dia.
E, nessa manhã deu por si a recordar as voltas que a vida dera e como acabara por chegar ali.
Agora tinha que interromper o seu pensamento…entrara uma senhora…atendeu-a, agradeceu, mais uma vez desejou um bom dia e continuou a sua viagem de regresso ao passado…onde ia eu? Ah…sim…, talvez se a D.Gina não a tivesse entusiasmado…quem sabe? O que faria agora?...uma coisa era certa…nunca se arrependera.
Já ia àquela pastelaria, à da D Gina, desde que casara; todos os dias se habituara a tomar café ali, antes de apanhar o metro para o emprego.
Gostava do sítio…acolhedor, pouco barulhento, sol a entrar logo pela manhã…o cheiro do café a sair…e a D. Gina sempre amável e sorridente; às vezes o rosto mente ao coração…sim, ela bem o sabia…tinha sido por causa disso…um dia, já passados alguns anos…alguns? muitos …então já estava quase a reformar-se…bem, nesse dia tinha falado mais um pouco com a D. Gina…o tempo tinha-as aproximado e vencido a barreira do vulgar cumprimento, para de quando em vez, dar lugar a um desabafo…a uma confidência mais pessoal…coisas próprias de mulher : Mariana falara-lhe da sua impossibilidade de ser mãe, do desgosto, da mágoa, do vazio ...não, do marido nada tinha a dizer …sempre gostara dela e o demonstrara…mas a ideia de adopção…isso não! e perdera então toda a esperança…o tempo acabou por suavizar, mas nunca preencheu um certo recanto, lá, dentro dela, sabe como é !
Outra cliente….Mariana conteve o pensamento…desta vez demorou um pouco mais; era uma cliente indecisa…mas, paciência era com ela, e lá ajudou a senhora que saiu bem satisfeita…adeus…um bom dia!
Agora e novamente o sorriso, lembrava-se como se fora ontem…
D. Gina sabia como ela tinha jeito para tudo quanto fosse trabalhos de mãos, tantas vezes tinha elogiado as suas pequenas obras …casacos, camisolas, luvas…e então nesse dia dissera-lhe que estava para arrendar uma pequena loja, ali bem perto…e agora que Mariana se ia reformar, podia abrir um pequeno espaço e tentar vender as suas peças….passaria o seu tempo com o que lhe dava prazer e ainda retirava um pequeno lucro….
Mariana nesse dia não pensou em coisa alguma e a partir daí só se aquietou, quando, reformada, viu abrir-se aquele pequeno ninho.
Já tinha decidido há muito como iria ocupar o seu dia; é verdade que não pudera ser Mãe mas nada a impediria de sonhar, imaginando em cada sapatinho que tricotava, o bebé que o iria usar e neste suave fingimento, estranho conforto de mãe que não era, o tempo se ia escoando.
Quando Mariana deu por si, já estava de regresso a casa. Nem dera pela saída.
Só se apercebeu, quando lhe fizeram companhia os últimos raios de Sol daquele dia de Primavera.
Maria José Ribeiro
Maria José Ribeiro
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