sexta-feira, 20 de maio de 2016

OS NOSSOS BONECOS

Iniciamos a série sobre os espetáculos populares da nossa infância. Pobres de recursos e imaginação, eram no entanto o que se podia usufruir, num tempo ainda sem televisão e onde a rádio era privilégio de muito poucos, pelo mundo rural de então.
Não vamos deixar a nossa vizinha Graciosa a falar sozinha. Há promessas de próximas colaborações.
AMONA-TE AÍ!

Adregavam  pelo verão. De onde, ninguém lhes perguntava. Destino, como de costume,  o largo. Mesmo a calhar!, alvoroçava-se a miudagem, farta de olhar para  céu e encostas; enjoada de ouvir  os cinco comboios, que quase nunca paravam no Paraisal,

Conta a Graciosa.  Do tempo, afiança que correram para aí uns três quartos de século.
Finda a  labuta diária, lá os encontrariam. No largo. Para que ninguém  faltasse, alertava o tambor e o  cornetim,  com os ganapos  no encalço. Nessa tarde, nas escassas águas do Noémi,  não haveria chilreio nem chapinhadela.

Os saltimbancos! Sempre em pequeno grupo, familiar, ao que se dizia, ou se desejava, em nome da moral. Animais poucos, senão eram mais bocas a encher: dois cães, bem-mandados - com fitas e chapelinho, "Tão engraçados!";  a cabra e  um burro, para transporte dos trastes.
Circo de miséria, público pouco menos do que isso. Guarda-roupa esfiampado, encardido. Números  consabidos. Equilibrismo, contorções (Ai! Como seriam dolorosas, queixavam-se os mais velhos da aldeia),  saltos imponderáveis. Dois homens, pai e filho?,  floreavam o tradicional jogo do eixo.
A dado momento, a mulher gritava-lhes:
«Agora, amonam-se vocês os dois!»
Amonar, sim senhor, dizia-se por lá: dobrar a espinha, amochar... A Graciosa tinha razão!

Curvavam-se os machos, que o número passaria para as fêmeas. Primeiro, a mulher pulava por cima deles, sem precisar de  apoiar as mãos nos lombos. Repetia a habilidade e parava, para se curvar também, cara para o chão, mãos firmes nos joelhos. Amonada.
E aí ordenava:

«Tchiba!!!»
Não, a cabra não estava distraída. Soltava um  , e atirava-se em  correria, para voar  sobre os três  companheiros da trupe.

Delirava o pessoal: só aquela parte, já não davam o tempo por perdido

Que o melhor estava por vir.
A cabra afastava-se, a espiolhar uma ervita. Punha-se o saltimbanco-chefe  com uns gaguejos lorpas: não sabia do chapéu.
Onde o teria deixado?
Enquanto estivera a amonar, varreram-se-lhe as  ideias.

Caído ao lado de uma tripeça. Afinal, à vista de todos . Cabeça a sua!

Pegava no chapéu, compunha-lhe a copa, sacudia-lhe o pó das abas, mostrava-o ao excelentíssimo público, bom entendedor...
Uma moedinha, para a ceia! Das brancas, mais fáceis de contar, senhoras e senhores. Confiava o peditório à miúda mais pequena.

Mulher e filho dobravam agora uma lona,  remendada. As vezes necessárias para que servisse de almofada.

«Ó pai, amone-se lá.»
Queixava-se o homem, das cruzes, Outra vez de rabo para o ar?
Aproximava-se a mulher, para lhe assentar o pano por cima das costas.
Vá lá, Chico! A mulher ordenava:

«Tchiba, põe-te no Chico!»

Voltava à cena, a cabra encarrapitada nas costas do homem. Juntava os cascos,  procurando endireitar-se, num vértice, ao centro da almofada. .

Mais palmas premiavam o momento nobre do espetáculo.

A mulher fazia vénia e aconselhava:

Nunca deixassem as senhoras,  que uma cabra fizesse aquilo aos maridos...
«Sai já daí, minha desavergonhada!»
Galgava o animal, acabava a festa.

E que mais, Graciosa?

Esquecera-se de falar da dança dos  cãezinhos...
Não importa.
Depois, os saltimbancos...
Davam conta do valor da coleta. Agradeciam e
anunciavam  o espetáculo do dia seguinte: em Monteperobolso.
Pernoitariam numa corte abandonada, à saída do Paraisal. Castelo Mendo, Almeida.

Graciosa, com Joaquim Beja



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