Escrita despreocupada, insiste na ideia de recreação. Como se anunciara, novas versões de reconto se previam. Josefa e Maria José entraram no jogo, sem qualquer hesitação. Cabe-nos, ao ler os seus textos, recordar os contos de Mário Dionísio que desafiaram o nosso grupo para mais esta experiência de escrita.
Josefa, sem nunca se deixar vencer na luta pelas palavras convenientes, procura explicar comportamentos em função dos afetos envolventes da educação das personagens.
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Duas meninices
Fernando teve uma educação repressiva, demasiado rígida. Não tinha autorização do pai para brincar na rua. Sabia o que se passava pela fresta do portão ou espreitando por cima do muro do hospital, sem socializar com outras crianças da sua idade.
A família era composta pelo pai e por uma irmã mais velha. Ele era o elo mais frágil.
No liceu, tímido e mal inserido, mal trajado e com material escolar de inferior qualidade, era alvo da chacota, gozado por todos.
Quando quis iniciar a sua afirmação sexual, faltaram-lhe capacidade, gentileza, e não teve outro remédio senão a ameaça de denúncia ao pai de Angelina , caso esta não cedesse ao intento dele.
Nem naquele encontro com a rapariguinha saiu vencedor! A voz grossa do pai, o enfermeiro Serafim, : «Fernando!»
Tinha faltado às aulas e teve más notas. O castigo foi mais severo do que as habituais cinturadas, foi humilhante.
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A caminho do liceu, cruzou-se com Angelina, que vinha das compras. Ao dar com os olhos nele, desatou a rir como uma louca:
- Que reinadio que menino vai...Vai assim para o liceu? Com esses...
- Vou. E tu vais para o diabo!
À entrada da escola encontra-se com o Gabriel, seu colega de carteira, que lhe dirige palavras amigáveis. Que o pai era cruel! Mas o grupo do Bitá foi implacável... e Gabriel acabou por juntar-se a eles.
Tocou a campainha, Fernando ficou só no recinto escolar, só, com os pés enfiados nos sapatos de salto alto da irmã. Sapatos cambados, pés dormentes.
Ferido de raiva, deambulou por várias de Lisboa, e não voltou para casa.
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Angelina, um pouco mais velha, Brincava e ria muito, tinha liberdade de movimentos. Divertia-se com os amigos do pai e certamente com as outras crianças. A sua mãe era gentil quando lhe dizia como se devia comportar.
Ao invés de Fernando, não foi para o liceu, ficou no bairro fazendo recados. Simpática e risonha foi alvo fácil para o homem da carroça. Certamente seria a ele que comprava o pão e o vinho para levar ao pai, guarda do hospital em que trabalhava e residia o enfermeiro Serafim.
Fernando era sabedor dos encontros escondidos, insistia com Angelina, para que lhe fizesse o mesmo que ao velho da carroça.
*
Já adulta, com uma filha de cinco anos, Angelina viu Fernando a tentar subir para um eléctrico apinhado de gente. Empurrando uns, acotovelando outros, pisando muitos, conseguiu entrar; avançou e foi sentar-se ao lado de uma mulher gorda.
De mãos nos bolsos, olhar indiferente, pôs-se a assobiar. Envelhecido, cabelo grisalho, chapéu coçado, casaco lustroso, sebento, mal cheiroso. Assobiava.
Angelina ainda lhe sorriu, mas ele não viu ou ignorou.
Angelina pensou acenar-lhe: «Menino Fernando...Senhor Fernando, lembra-se de mim, da filha do guarda do hospital? ...Que disparate! Ganha juízo Angelina.»
Sim, com aquele comportamento, que seria ele capaz de dizer ou de fazer?
Fernando puxou o fio para o eléctrico parar. saiu ainda em movimento e caminhou encostado aos prédios.
Angelina reviu a meninice.de ambos. Talvez o rapaz não tivesse tido quem lhe chamasse Nandinho, entre beijinhos e afagos, como ela tivera em criança e hoje reparte com a filha.
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Maria José optou pela apresentação simplificada da intriga:
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Conseguisse coragem, fugia
Fernando brincava com Angelina. Ela mais hábil e atrevida do que ele, e isto incomodava o rapaz, um miúdo muito muito medroso, chamado de cagarola pelos amigos.
Era um miúdo muito complexado, tratado pelo pai com enorme violência.
Sofria grandes humilhações. Os outros podiam tudo, sabiam tudo; o pai batia-lhe, a irmã ridicularizava-o, os colegas de escola desprezavam-no. Até Angelina era mais sabida...
Isto fazia-o ser tomado por uma raiva enorme. Conseguisse coragem, fugia...
Surgiu a oportunidade quando um dia, por castigo do pai, lhe foi imposto levar para a escola os sapatos da irmã.
Ele levou-os e foi troçado por todos.
Depois, enquanto os colegas foram para a aula, ao tocar da campainha, Fernando tomou outro caminho.
Afastou-se da escola e da casa paterna. Já bastante longe, tirou os sapatos da irmã e experimentou caminhar descalço. Sentiu-se finalmente livre, com um força que ele próprio desconhecia.
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Chegaram os bonecreiros!
Depois de um breve convívio com Mário Dionísio, vamos à procura de outro autor. Um livro de Romeu Correia. Começando por trazer do fundo da nossa infância os bonecreiros. Esses mesmos, iam por toda a parte e paravam no largo da nossa memória.
Quem começa a fiada das estórias?
Marta Caires
Olhem, por modesto que seja o nosso blogue, têm chegado notícias de quem não só nos descobriu como gostou do que leu. Ah, sim! Marta Caires, cujas crónicas estiveram connosco durante duas sessões, teve a simpatia de, por entreposto Facebook, nos comunicar o seu agrado.
Quase apetece pedir-lhe que venha conversar com os Vizinhos do Livro, quando tiver oportunidade. E se ela aceitar?...
Bem haja, Marta.