Com este texto, propõe-se a nossa colega Elvira dar continuidade à passada leitura de dois contos de Mário Dionísio, extraídos de O Dia cinzento : "Assobiando à vontade " e "Com os sapatos da irmã".
Estamos sobretudo no domínio da escrita recreativa. Haverá certamente outras propostas, dentro do grupo de leitores.
Até à nossa próxima sessão, a 27 de abril.
Estamos sobretudo no domínio da escrita recreativa. Haverá certamente outras propostas, dentro do grupo de leitores.
Até à nossa próxima sessão, a 27 de abril.
O
FANTASMA DO PASSADO
O elétrico
avançava lento e roufenho, transportando à pinha a multidão saída dos empregos,
ansiosa por chegar ao aconchego do lar.
Ele
entrou e, perante o espanto geral, furou por entre os passageiros, sentando-se
no único lugar vago – o banco dos palermas.
Angelina
olhou – o e reconheceu-o. Com um esgar irónico, pensou que o nome do banco
assentava às mil maravilhas no homem que, com indiferença, se sentara nele.
Fernando
mirou, de soslaio, a gaja refastelada a seu lado e agitou-se com impaciência.
Quis comprimir-se para não tocar nas generosas adiposidades da mulher e, para
isso, cruzou a perna. Até ali, no miserável banco do elétrico, se sentia
inferiorizado. Fora assim toda a sua vida!
Olhou
em redor . Reparou numa mulher que o
olhava insistentemente, com um sorriso nos lábios, cruzando os braços sob o
peito avantajado. Não a reconheceu e, com desprezo, concluiu:
«Alguma reles pega que tenta um engate!»
A sua
paragem aproximava -se. Levantou-se e, ao passar pela mulher, ouviu-a articular
com esforço:
-
Menino Fernando… senhor Fernando, lembra-se de mim? Eu sou a Angelina… a filha
do guarda do hospital.
Fitou-a
com incomensurável rejeição. A sua vontade foi cuspir-lhe na cara para
extravasar o sofrimento inaudito que tivera na infância e juventude.
Afinal,
Angelina entregara-se ao velho astuto, em troca de uns meros chocolates e a ele
que, com volúpia a desejara, mostrara-se arredia a aproximações,
chacoteando dele.
.
.
.
Sentiu
falta de ar e afastou-se, ignorando-a. O regresso das recordações da sua
infância era como lanças que se cravavam no meio do peito. Nunca fora capaz de
perdoar a crueldade do pai, do amigo, dos colegas, da Angelina…
Saiu
do elétrico sem sequer voltar a olhá-la e caminhou taciturno pela rua. Uma onda
de ódio eclodiu no seu peito e desejou vingança sobre o velho ancião que o
zurzira com o cinto, sentindo uma lasciva alegria ao imaginá-lo, agora indefeso,
a gotejar suor pela testa enrugada, sem se poder defender do carrasco,
indiferente ao seu pedido de misericórdia.
Como
era possível, passados tantos anos, que a presença de Angelina lhe avivasse o
sofrimento, que julgara adormecido no seu subconsciente?
Subitamente,
sentiu uma ferroada no peito, a respiração entrecortou-se e cambaleou. Caiu
desamparado e, através dos seus olhos nublados pela dor física, viu os
transeuntes rodearam-no. Mesmo no fim da vida, desorientado e assustado,
pareceu-lhe ver num deles o pai cruel e de difícil trato, mostrando-se
inflexível a castigá-lo à cinturada; noutras fisionomias, imaginou o escárnio e
a humilhação que sofrera, num dia já longínquo, ao atravessar as ruas da sua
terra natal, lacrimejante e cabisbaixo, calçado com as velhas sandálias de
salto alto da irmã – castigo imposto pelo pai.
Nada
mudara! – pareceu - lhe. A dúvida estampou-se no rosto empalidecido. Desejou a
morte com veemência para se sentir, finalmente, liberto de tão profundo
sofrimento.
Arquejou,
deu o último suspiro e a cabeça caiu inanimada no passeio da avenida!
O
«Cagarolas» morrera! Nem mesmo, no fim da sua vida, fora competente em ter quem
chorasse por ele.
Pela
sua face já lívida, a última lágrima rolou tardia e teimosa!
Elvira Carvalho
Elvira Carvalho