Aqui temos o livrinho que nos desafiou: Crónicas de Marta Caires. Sugere-se a sua leitura, a quem sabe envelhecer com os sentidos despertos pelas memórias da infância.
Maria José
A minha escola primária
Eu nasci a 19-9-48, na aldeia do Ladoeiro, concelho de
Idanha-a-Nova, distrito de Castelo Branco.
Em Outubro de 1955,
fui para a 1ª classe. A minha mãe levou-me à escola, e foi-me dizendo que eu
iria gostar, pois iria aprender muitas coisas. Ia muito excitada, dentro da
minha bata branca e com uma sacola onde levava um livro, caderno, lápis e uma
pedra.
Ao chegar lá, a minha mãe entregou-me a uma professora e eu
lá fiquei bastante inibida.
Fiquei com a D. Estela e esta ficou também com a 3ª classe.
A escola era muito bonita com rés-do-chão e com um jardim e
um primeiro andar. Na parte de trás havia 3 casas de banho, mas não havia água
canalizada nem luz eléctrica. Mais atrás havia um campo, onde se jogava à bola quando
o tempo estava bom.
Éramos só raparigas, e pegada à nossa escola havia a escola
dos rapazes. Só nos juntávamos para
fazer competições, estas organizadas pelos senhores professores. Era um tempo
em que havia muito respeito pelos senhores professores.
Os nossos pais ensinavam-nos a respeitá-los muito e davam-nos
o exemplo. A minha professora ensinava-nos muito bem e levou-me até à 4ª
classe.
Este exame foi feito em Idanha-a-Nova, mas íamos bem preparadas.
Lembro-me que a senhora professora
gostava que eu perguntasse a matéria dada às colegas e eu ficava muito vaidosa
e contente, pois era costume serem os melhores alunos a fazerem isso. Também gostávamos
muito de esperar a chegada da nossa professora, para lhe tirarmos a pasta e o
peso que ela levasse. Sentíamo-nos prestáveis e agradávamos com essa pequena
delicadeza.
A minha professora também fazia uso da menina-dos-cinco-olhos
, quando lhe parecia que se justificava; e colocava-nos as orelhas-de-burro,
sendo isto muito traumatizante para nós."
Joaquim B.
" [...]
VOU PARA A ESCOLA!*
As vindimas, as primeiras chuvas. Aromas outonais. Sinais de
abertura das aulas. Aproximava-se o dia 7 de outubro de 1950. Ansiedade.
Uma manhã, ao passar
em frente da grande janela da adega, gritei para o pessoal que pisava no patamar
da tinta: «Vou para a escola!». Vaidoso, enfarpelado na bata branca, um pouco
contrafeito pela obrigação de levar, a escorregar-me da cabeça, um
palhinhas de arroz. Compra habitual
da minha mãe, ao chegarmos em cada época balnear à Nazaré.
Não sei se algum dos trabalhadores que espreitou – espero que
não tenha reparado no ridículo chapéu – a seu tempo tinha ido à escola. Se se tinha visto naquela
estranheza da bata e da mala de papelão ou da sacola
atravessada no peito, a caminho das
aulas.
Não, de certeza, o Herculano Salsa, capataz. Mesmo assim,
onde teria ele ido desencantar as
histórias duns gigantes - o Arranca-Pinheiros
e o Passos-de-Légua - que eu não cansava de lhe ouvir?
Haveria na escola quem
contasse histórias tão interessantes ?
Foi o meu pai que me levou. Era sábado.
Passados todos estes anos, continuo a sentir no ar a
expetativa outonal das terras aguardando sementes, em cada regresso letivo.
Mesmo aqui em Sintra, aula aberta para a minha última encosta verdejante.
Que sina! Entrei na escola, nesse tal sábado, e deixei-me
ficar, por tanto tempo… Camponês , esquecido de insucessos da colheita
transata; esperançoso no reverdecer da nova seara. De nova turma.
Ainda hoje estou em crer que o meu pai, nessa manhã, seguia para
a escola tão feliz como eu; a considerar pelo tom prazenteiro com que ficou à
porta, em conversa com a velha professora. Perguntava-lhe ela pelas andanças
dos seus antigos parceiros, que bolandas lhes trouxera a vida. Sobretudo os que,
se foram ausentando das redondezas da escola, e das ruas da cidade.
Hoje (escrevia, então, em 1996), poucos restarão vivos dessa
turma da D. Angélica… Ainda eram muitos, quando em abril de 1978 se prestou, na
escola da Portela das Padeiras, uma tardia,
mas sincera homenagem a essa
professora.
Festa em que o meu pai
continuava tão radiante - ele tinha um fraquinho por esta palavra - como no sábado em que me entregara à
nossa professora.
Partiu em abril de 1995, o meu pai. Mente já muito
perturbada, gritando inesperadamente pelos nomes dos seus colegas,
convidando-os aos jogos no recreio, desafiando-os para antigas sabatinas, dirigidas
pela D. Angélica.
Ali estava eu, de
chapéu na mão. Com uma ardósia e um livro a chocalharem dentro da mala; coração
chocalhando no peito. Ansioso pelo fim
do palavrório.
Farto de mirar os dois pisos do edifício ocre, de paredes
escalavradas. Dera de barato ao primeiro
andar, residência da professora, todavia
em pulgas para trepar os quatro degraus
até ao patamar de acesso à grande sala
de aula.
Cenários de crueldade, nas aulas da D. Angélica, não eram segredo. Minhas tias Lucinda e Piedade sempre
reclamaram contra tais ações educativas, em confronto com a condescendência da
maioria dos antigos alunos. Que as tomavam como um mal necessário: "De pequenino se retorce… " etc.
Embora com este receio,
sentia que nunca mais se abria aquela porta.
Um grito explosivo despertou-me para o recreio: «Saraquicaaa…lho!!!»,
berrava um matulão, agarrando um adversário de um jogo .
Saraquicalho: confronto de rapazes. Uma equipa,
ao mesmo tempo que defendia um reduto
desenhado no chão – o coito -,
perseguia outra. A captura de um fugitivo
era anunciada com aquele berro vitorioso. No mais, corridas, fintas, avanços e
recuos em direção ao coito. Onde os perseguidos tentavam entrar sem ser
catrafilados. E, se isso sucedesse,
outro grito rompia da garganta do invasor: «Livre!!!!»
Não era um jogo fútil, recordo nesta revisão, antes um símile da própria existência : perseguição,
fuga, liberdade, abrigo…
Muitos dos intervenientes
eram rapaziada da Besteira. Sem interromper o volteio, pelo pátio das
traseiras, acenavam-me, sorridentes.
Quem não alinhava no saraquicalho, esganiçava-se a pontapear,
mais ao largo, a trapeira.
Do lado oposto, apartadas da vista deles pelo edifício
escolar, as meninas ocupavam um terreiro
bem comportado, plantado de
robínias. Cantavam de roda, corriam a bebericar no poço, por
entre alegretes e alfobres de um
hortedo. Onde a professora e o vizinho Silvino Direitinho cultivavam flores e
legumes, em parceria; com ocasional mãozinha voluntária dos alunos mais
encorpados.
Pois o poço. «Minha senhora, posso ir beber água?» Que
fôssemos, não bebêssemos do balde. Disso já me avisara o Rebelana, para não se
apanhar boqueira, nem correr o risco
de ser arrastado pela corda. Acrescentara ainda uma informação
ornitológica: reparasse nos ninhos de viuvinhas, por entre as tijoleiras
da parede. De pássaros percebia ele.
Ele e muitos dos machos escolares dos Casais da Besteira, por alcunha:
Coquelim, Rebelana, Techarra, Padreca e o Quintas… Este, irmão do Rebelana, filharada do Ginja e da Rosa
Bento. Dei pela falta do Bisoiro que,
tendo reprovado na terceira classe, fora posto a guardar cavalos
na quinta dos Gatos. Raparigas daquela vizinhança, havia uma, a Genita,
irmã do Padreca.
Nesse sábado, chegavam mais uns novatos: eu, - presente, minha senhora! - o meu
vizinho Pedro, o louro e endiabra -do Pedro Gato,
e o Toino-Toino do Pagante . E só uma rapariga, a Fernanda, da Maria dos Reis. Muito tinha ela de caminhar, entre silvas e valados, desde casa até
à escola.
Crianças de muitas mães… Tenho de encurtar a prosa. Pobres ou
remediados, limpinhos (pelo menos no primeiro dia) ou andrajosos; penteadinhos
de risco ao lado, trunfa rebelde empastada a brilhantina, geleia de marmelo ou,
tão somente espuma de sabão azul… Sim, para não falar dos rapados, a vinte e
cinco tostões, no quarto minguante, na cadeira do mestre Adelino Barbeiro, meu
tio, marido da tia Lucinda. Terminada a limpeza, sacudida a toalha, logo eles
voltavam a enterrar a espanhola até às orelhas. Por algumas vezes, (quem não sabia das aflições desse tempo?)
tinham as famílias de contar com o bom coração de outro mestre, o Jaquim
Ferrador, ali a dois passos da nossa sala de aula.
Uns calçados de botas
ou sapatas ensebadas, que os sapateiros
da Benedita vendiam na feira, em Santarém; tantos de pés ao léu, solas encoiradas
pela agrura dos caminhos.
M. de Alcanhões, quando um dia o invetivei por ter "metido o chico", para seguir a vida
militar, em plena guerra colonial, deu-me réplica irrefutável. Só tinha calçado
as primeiras botas aos quinze anos! Para continuar na serventia a pedreiros. A tropa sabia-lhe a pera doce.
E havia as miúdas. De
tranças a tilintar sorrisos, laçarotes,talvez borboletas, asas de arvéloas…
As meninas que ainda hoje lá continuam em roda no recreio daquela e de todas as
escolinhas do mundo. Na grande roda seguem, agora, a Marta e Sofia, o Tiago… Lá irás também, bebé Álvaro!Que as apartações nos jogos infantis foram bafios daqueles antigamentes.
Elas, tenho de confessá-lo, eram, salvo exceção, muito
mais rápidas a papaguear as lições e a cumprir as vontadinhas da professora.
Lembras-te, Nucha? Rucha, chamava-te o Padreca, pois tu eras ruiva
como uma irlandesa. Lembras, sim. Apareceste ali naquela manhã, queixito
empinado para o basbaque dos rapazes. Canudinhos cenoura, num
esconde-esconde sobre um rosto tão sardento.
[«Desapareceram-te as sardas, Nucha?» Agora! Sem rodeios, explicaste, várias décadas depois, em que zonas ainda te persistiam. Teu marido
sorriu da minha perplexidade. Velhice, sem malícia.]
Garotada da bata branca. Branca, à força de barrelas de
cloreto. Quantas vezes corregia a professora que não se dissesse clareto. Mas porquê? Se era nome muito mais evidente. Bata branquinha, ainda
que lavada na água barrenta ou escassa de alguma alcorca. Mesmo assim, as
manchas e mágoas que elas escondiam, as
nossas batas.
As dos rapazes, abotoadas à frente ou sobre o ombro esquerdo;
as das meninas, em bibe, fechando nas costas. Com uma algibeira, que a gente
dizia mais algibeira do que bolso,
do lado do coração. Onde as mães bordavam a ponto-cruz um “EP”, azul ou rosa.
Orgulho da professora, logotipo da sua missão, “Escola da Portela”. Da Portela
das Padeiras, para onde vazavam catraiada, além da nacional 3, todos os caminhos e quintas em redor…
Miúdas e miúdas, de gente agarrada ao sítio. Que dali empurrados, pelo trabalho, guerra, emigração... se haviam de espalhar pelo mundo. E hoje não topo internet que os recupere.
Quantas vezes não pensei que eles e elas, sim, servindo-se ou
não do quase nada que a escola lhes dera, foram por aí fora, enquanto eu fiquei
tolhido na quadrícula das carteiras das aulas.
Da ultima vez que conversei com o Pedro Gato,
congratulámo-nos com o facto de tantas dificuldades dos nossos antigos
condiscípulos terem sido despistadas. Pelo seu relativo sucesso na vida adulta.
Graças à escolaridade e ao empenho profissional. E à sorte, acrescentou. Tinha
razão, anui em silêncio… E em silêncio nos abraçámos à despedida. Para nunca mais.
«Para dentro, meninos!», chamou a professora. Meu pai acenou e foi à
sua vida, com o pai do Pedro.
Estava na hora. Com os outros, trepei para a sala de aula... Meu poleiro de uma vida. "
*Excerto de um relato autobiográfico, cedido pelo Autor a terceiro, para trabalho académico. Texto em processo de revisão.