Continuamos a escrever ao impulso da memória, sobretudo. da memória afetiva. Terminámos 2015 trazendo ao grupo dos Vizinhos registos do nosso primeiro dia de aulas, na escola dita primária, dos idos de 40 e 50. Foram as crónicas de Marta Caires a desencadear esta nova linha de devaneio literário.
Os textos trazidos à leitura dão para perceber e analisar os motivos que, depois de tantas décadas, permaneceram no nosso espírito. apetece perguntar porquê? Entre eles, a exatidão da data de ida à escola pela primeira vez, a revelação de novos espaços, pessoas e laços sociais.
Publicam-se os textos por ordem de chegada ao Grupo. Aguardam-se, ainda, novos testemunhos.
Leonilde
Um caderno um lápis uma pedra em lousa
Joaquim M. S.
Os textos trazidos à leitura dão para perceber e analisar os motivos que, depois de tantas décadas, permaneceram no nosso espírito. apetece perguntar porquê? Entre eles, a exatidão da data de ida à escola pela primeira vez, a revelação de novos espaços, pessoas e laços sociais.
Publicam-se os textos por ordem de chegada ao Grupo. Aguardam-se, ainda, novos testemunhos.
Na primária das Galveias
Na primária das Galveias, a 7 de
Outubro de 1951, foi o meu primeiro dia de escola.
Lembro-me que levava vestida uma
bata de sarge [sarja] branca e uma
sacola de serapilheira, onde transportava uma pedra em lousa para escrever e um
livro de leitura, que já tinha sido dos meus irmãos. Foi com ele que nós
aprendemos a ler.
Os meus pais diziam-nos que os
livros não se podiam estragar, pois tinham de servir para os três, e assim foi.
Recordo a professora, chamava-se
Maria de Lurdes era natural de Évora e irmã do cantor Francisco José.
A sala estava dividida em duas
classes: 1ª e 3ª. No r/c, estavam as meninas e no 1º andar, os rapazes.
A primeira actividade para as
meninas da primeira classe foi a realização de um desenho. Algumas disseram que
não sabiam fazer, eu fui uma delas. Mas quando comecei a ver o que outras
faziam recordei-me dos meus irmãos me terem ensinado, quando faziam os
trabalhos de casa. Eu gostava de ver, então diziam-me para fazer bonecos, e eu
fazia sempre três: era eu e eles. Desconhecia o significado da palavra desenho, logo aqui fiz a minha primeira
aprendizagem.
Chegou a hora do intervalo. Era
uma criança introvertida: fiquei no meu cantinho do pátio, a apreciar as
cantigas de roda […..] se comparavam aos gritos do jogo da apanhada.. Os
rapazes jogavam ao berlinde, que era substituído por bugalhas produzidas pelos carvalhos; outros jogavam à bola de
trapo, feita de meias velhas.
A alegria de todos: transmitiam
sorrisos.
Também eu fui feliz na escola,
pela aprendizagem e amigas que criei. Ainda hoje relembro com saudade.
Elvira
«Porta-te bem!»
O meu
primeiro ano escolar decorreu em Torres Novas.
O edifício ainda se situa na freguesia de S. Pedro,
junto à igreja e é um prédio incaraterístico, hoje transformado em biblioteca.
Recordo-me,
embora vagamente, do meu primeiro dia de escola. O meu pai acompanhou-me e,
todo o caminho, foi-me sussurrando:
- Porta-te
bem! Toma atenção às explicações da senhora professora!
Porta-te bem? Era uma recomendação escusada, pois eu
era uma menina muito sossegada, tímida, bem longe da adolescente rebelde em que
me tornaria…
Cerro os olhos para visualizar esse momento: ali ia
eu, a bata muito alva, com os seus machos bem vincados, cabelo penteado com
duas tranças simétricas, feitas pelas mãos engenhosas da minha mãe e rematadas
com dois laços empertigados da cor da bata.
Meu pai e eu íamos de mão dada, levando na outra uma
pasta de couro, onde introduzira um caderno de duas linhas, outro quadriculado,
uma pequena ardósia e uma caixa de madeira, cuja tampa deslizava, deixando ver
os lápis, borracha e caneta.
Chegados, meu pai foi falar com o diretor da escola de
quem era muito amigo, principalmente devido às patuscadas realizadas no «Zé da
Bola», recinto de bons petiscos e melhores bebidas etílicas, adjacente ao campo
de futebol do clube torrejano.
Meu coração batia desordenadamente quando, no cimo das
escadas que davam acesso à sala de aula, vislumbrei a Dona Berta: alta, esguia,
fato escuro escorrido, quase até ao tornozelo, face angulosa, cabelo já com
algumas cãs, puxado para trás e apanhado num toutiço feito com mestria.
Apesar do seu ar austero, recordo-me que poisou a mão
ossuda na minha cabeça, sorriu-me ternamente e mandou-me sentar, enquanto ficou
à conversa com o meu pai e o diretor.
Sentei-me mesmo à frente, talvez na única carteira
vaga. Encarei-a com curiosidade: lá estava o buraquinho com o tinteiro de
porcelana branca, ao lado o rebordo onde colocaríamos os nossos lápis e o tampo
da carteira na posição oblíqua. Não tive coragem de o levantar, receosa que ele
tombasse estrondeando, o que faria que os olhares do resto da criançada se
focassem em mim!
Olhei, sorrateiramente, para a esquerda na ânsia de
encontrar alguém conhecido, alguma criança amiga. Boa! Não estava sozinha! No
meio da sala, lá estava ela, a Margarida, filha de um colega de meu pai.
Achava-lhe imensa graça, talvez por ter um feitio que era a antítese do meu.
Sardenta, cabelos fulvos, faladora, as suas gargalhadas ecoavam onde ela se
encontrasse e logo senti um lenitivo com o seu largo sorriso, mostrando os alvos
dentes. Voltei a cabeça para o lado oposto e vislumbrei outra criança
conhecida: a Ivone. Como eu a admirava! Ou melhor, a ela não, mas àquelas duas
covinhas ternurentas que, logo surgiam nas faces, mal esboçava um sorriso. Bem
sonhava eu ter umas covinhas iguais!
Vou fazer-vos uma confissão: em casa, ficava longo
tempo com o indicador espetado nas minhas bochechitas rosadas, esperando,
ingenuamente, que as covinhas se fixassem no meu rosto. Como podem constatar,
foi em vão tão «árduo» trabalho…
Voltando à minha professora, pouco me lembro do que se
passou naquele dia. Sinceramente, só tenho a noção, embora vaga, que nunca fui
admoestada nem senti a régua na minha pequenina mão. Pudera, eu era tão
caladinha e aplicada!
Foi, com suave nostalgia, que recordei, embora
enevoado com o tempo, o meu primeiro dia de escola e a D. Berta, que foi minha
professora durante dois anos letivos. Não voltei a vê-la. Penso que, talvez,
nessa altura, se tenha reformado. Quando me lembro dela, sinto uma ternura
infinda pelo carinho e paciência com que desbravou as nossas cabecitas.
Josefa
Localiza-se no centro do
povoado
O meu primeiro dia foi a 7/10/50. Acompanhada
pela minha mãe; apresentou-me e entregou-me à Sra. Dulce, professora e
residente na aldeia que se chama Gata.
Dista
mais ou menos 5 km da cidade da Guarda. Gata é atravessada pela linha de
caminho de ferro que vai da estação da Guarda para Vilar Formoso. Por onde
circulavam vários comboios, entre eles o Sud-Express
internacional que ali atinge já grande velocidade. Corre próximo o rio Diz
que, nesse tempo, no Inverno provocava grande incómodo, quando havia
necessidade de o atravessar, quer pela frágil ponte de pedra quer pela
oscilante ponte de madeira. Há ainda o cemitério, à beira do caminho, que era o
terror das crianças, devido às histórias que se contavam.
Do edifício escolar desconheço a idade e a
sua história. Localiza-se no centro do povoado, próximo do chafariz, da fonte,
do bebedoiro, do forno, do lavadouro, em forma de capela com alpendre. De
construção granítica, sala única, quadrangular; com uma porta, quatro janelas,
várias carteiras par dois alunos e secretária; um fogão de sala ou salamandra.
Suspensos na parede frontal, um quadro de ardósia, mapas e duas molduras com
fotos dos presidentes da República, general Carmona e o do Conselho, Salazar.
Nela se lecionavam da 1ª à 4ª classes,
incluindo a admissão (para poucos). Desconheço o número total de alunos. Da
Gata éramos poucos, a maioria vinha de duas aldeias e quintas próximas.
Passávamos o dia todo na escola. Os de fora faziam o percurso a pé, alguns atravessavam
a linha-férrea sem qualquer protecão, a não ser a placa branca com um X, a informar: «Atenção! Pare, escute e olhe».
O rio Diz, em dias de temporal, com a tal
ponte em parte de madeira oscilante e, ainda, a porta e parede do
cemitério…Eram medonhos estes obstáculos para as crianças para as crianças.
Éramos todos pobres, mal vestidos e calçados
higiene pouco cuidada, alguns com alimentação deficitária, de várias idades,
físicas e mentais.
Em
dias de grande intempérie, os de fora chegavam encharcados, tremendo de frio de
muito sacudidos pelos ventos gélidos, assim se mantinham à beira do fogão, até
secarem a roupa no corpo. À tarde, e às vezes já noite, era o regresso às suas
casas, com o mesmo rigor ou pior ainda.
A alimentação era toda trazida de casa, tal
como o parco material escolar, na sacola ou talega. Era comida ou ingerida na rua ou no telheiro da capela. Nos
piores dias de tempestade, a professora apelava a que convidássemos os de fora
q irem comer a nossa casa. Ela própria fazia distribuição, para algum conforto
possível.
Da
parte de alguns meninos da Gata havia provocações, encontros em sítios
estratégicos e já mencionados, noutros, que geravam grandes sustos. E até
agressões físicas.. Durante o recreio, também ocorriam vinganças e violência.
Não existiam auxiliares de ação educativa
nesta terra, encalhada na pobreza, na dominação e deturpação da fé cristã, na
ignorância e no medo.
Hoje penso que a minha escola tinha pouco
autonomia, pos até o exame da terceira classe fomos fazer a outra localidade.
Barracão.
Quanto à senhora professora, no meu entender,
era pouco tolerante para com aquelas crianças com mais dificuldades de
aprendizagem. A régua e a cana entravam em ação com bastante frequência, assim
como outros castigos.
O aluno que indicado por ela respondesse
acertado a outro que estava a ser interrogado, era convidado a molestá-lo. Este
ato era gerador de conflitos e vinganças, entre alunos, fora do espaço escolar.
Pelo exposto, não nutro grande afeição por
este tempo nem por esta escola.
Rinchoa,
3-11-2015
Josefa
J. Gonçalves Teixeira.
Escola Alexandra Martha da Cruz
INTRODUÇÃO
Corria o ano de 1943. O mundo assistia ao
desenrolar da Segunda
Guerra mundial. Embora Portugal não
participasse directamente na guerra, os
seus efeitos fizeram-se sentir na vida dos portugueses,
especialmente das
camadas mais desfavorecidas das aldeias do interior norte do país. Nasci
numa dessas aldeias onde não havia luz eléctrica, água canalizada e
saneamento básico. As casas, todas construídas em granito, abrigavam
pessoas e animais do clima gelado do
rigoroso inverno e do tórrido verão. A
minha aldeia chama-se Miuzela do Coa no
concelho de Almeida, distrito da
Guarda e é sede de freguesia. Fica situada numa encosta na margem
esquerda do rio Coa e na margem direita
do rio Noémi, a 750 metros de
altitude, dista cerca de 30 KM da sede
do distrito e outros tantos da sede do
concelho. É servida pela linha de
caminho de ferro da Beira Alta e possui um
apeadeiro a cerca de 1KM da freguesia. A
minha aldeia já existia no século XII.
A MINHA ESCOLA PRIMÁRIA
A minha escola era, e é, um edifício diferente
de todas as escolas
primárias existentes naquela época,
constituído por um só piso, com quatro
salas de aula, duas para rapazes e duas
para raparigas, com dois professores
e duas professoras respectivamente, de
linhas arquitectónicas, que, creio, não
haverá nenhuma igual em Portugal. Não obedece ao chamado “ Plano
Centenário”, como a maioria das escolas construídas por este país fora
naquele período do chamado “Estado Novo”
!... Foi mandada construir por um
particular da minha aldeia que, depois de regressar do Brasil onde fora
emigrante, a ofereceu ao povo da sua
terra natal. É um edifício muito bonito,
circundado por jardim e pátio de
recreio, já nessa época com sanitários, sendo
o recreio dividido ao meio por um muro,
separando os rapazes das raparigas.
Assim, o recreio e os sanitários eram
completamente separados por sexos. Foi
inaugurado no ano de 1932, como consta
da inscrição no frontispício, bem
como o nome da escola que é o do doador:
ESCOLA ALEXANDRE MARTHA
DA CRUZ.
- A MINHA
APRESENTAÇÃO NA ESCOLA
No dia 7 de Outubro de 1943, ainda não
havia completado os 7 anos de
idade, a minha mãe levou-me ao colo, rua
acima, até à escola primária, onde
me entregou ao professor. Ia cheio de
medo, a mudança de ambiente causava-
me calafrios, pois embora a escola não
ficasse longe de casa, o sítio mais
afastado onde eu já tinha ido sozinho,
era a casa do meu avô Álvaro ao fundo
da povoação, talvez aí uns 100 metros de
distância. Era, pois, o meu mundo de
então. Chegados à escola e depois de a minha mãe me recomendar ao
professor, ali fiquei; nervoso e receoso
ao princípio, comecei a acalmar-me à
medida que os outros caloiros da minha
idade foram chegando à escola. Afinal
se aquilo era tenebroso, não era só para
mim! Ao entrar na sala de aulas e ao
sentar-me na carteira, olhei em redor e
destaquei o enorme quadro preto e nas
outras paredes vários mapas em que
sobressaía um quadro que representava
uma família aldeã, constituída pelo pai,
homem forte e bem parecido,
que
entrava numa casa bonita e bem
arranjada, com a enxada ao ombro, enquanto
a mulher trazia a
refeição para a mesa e o filho, vestido com a farda da
mocidade portuguesa, se apressava a sentar-se
à mesma. Ao longo dos quatro
anos da minha permanência naquela sala
de aulas, muitas vezes fixei aquele
quadro e achava uma enorme
desconformidade entre o que ele representava e
a realidade das casas e da vida das
pessoas da minha aldeia.
O MEU PRIMEIRO PROFESSOR
O professor, homem calmo e de idade já
avançada, pertencia a uma
estirpe de famílias da nobreza aldeã,
talvez da antiga cavalaria vilã, detentoras
de brasão e senhoras das mais
importantes casas e propriedades rurais, não
só da minha aldeia como das outras
terras das redondezas. Dos familiares que
conheci naquela época, só ele e outro
irmão atingiram formação intelectual de
relevo, pois este, a quem chamavam “Doutor”, parece que tinha atingido
formação laico-religiosa adquirida em Itália.
Era o que se dizia. Parece que os
descendentes directos, aqueles que os
tinham, já que parte daqueles irmãos,
que eram muitos, morreu sem eles, também não chegaram a ter qualquer
formação superior.
A MINHA PRIMEIRA AULA
O primeiro trabalho que me foi proposto fazer, foi traçar na “pedra”
( ardósia) dois segmentos de recta
paralelos a toda a largura, ligados entre si
por outros segmentos perpendiculares e
equidistantes entre si por forma a o
conjunto constituir uma escada. Na
altura, os alunos da primeira classe ainda
- não
tinham régua e as linhas eram traçadas à mão livre, pelo que era difícil
as
linhas serem rigorosamente equidistantes
para merecerem o nome de
paralelas! Assim passámos o primeiro dia de aulas a fazer “escadas”,
apagando com cuspo e um pano e
repetindo, no sentido do aperfeiçoamento
da obra! Nos dias que se seguiram,
começámos a tentar desenhar as primeiras
letras e, naturalmente, a pronunciá-las,
a memorizá-las e a juntá-las, para mais
tarde aprendermos a ler e escrever.
O MEU SEGUNDO PROFESSOR
No início da segunda classe fomos
surpreendidos com o aparecimento
de um novo professor, porque o primeiro tinha-se reformado. Este novo
professor era genro do primeiro, tinha
vindo de uma terra lá dos lados de
Castelo Branco. Tinha fama de ser tão
bom professor como de carrasco! E de
facto assim era: bom professor porque
ensinava e puxava pelos alunos das
quatro classes que leccionava. Na minha quarta classe levou a exame 18
alunos, tendo obtido 15 distinções e 3 aprovações;
carrasco, porque batia nos
alunos que não estudavam ou
não mostravam capacidade para aprender.
Tinha um feitio violento. Os métodos de
ensino, por vezes, eram terríveis! No
português, disciplina para ele fundamental,
chegava a organizar “desafios” na
conjugação dos verbos, colocando os
alunos em semi-círculo e começando por
uma ponta a perguntar os tempos e modos
dos verbos. Se o aluno respondia
bem, perguntava ao seguinte outro tempo
ou outro modo; se este respondesse
errado ou não respondesse, passava a
pergunta ao seguinte e caso
este
acertasse mandava-lhe pegar na régua e
bater no colega que não sabia a
matéria. Esse dia era um dia de terror
para alguns alunos. Logo nos primeiros
dias de aulas, substituiu a régua normal
do seu antecessor, fina, graduada, que
de vez em quando desaparecia,
introduzida nas frinchas da secretária pelos
alunos mais velhos, por uma régua grossa
com cerca de dois centímetros de
espessura, mandada fazer de encomenda a
um carpinteiro. Certa vez, pediu a
um aluno para lhe arranjar uma vara
comprida para servir de ponteiro que
chegasse ao quadro com ele sentado à
secretária. O aluno levou a vara mas
perguntou-lhe aonde a foi cortar. O
aluno disse que a cortou numa árvore do
quintal que ficava
em frente da escola. Acto contínuo, deu-lhe logo umas
varadas porque o quintal era propriedade
do seu sogro!
Naquele tempo não havia auxiliares de
acção educativa e eram os
alunos que, ao sábado procediam à
limpeza da sala de aulas, varrendo e
limpando a sujidade maior agarrada às
tábuas do soalho de madeira. Também
ao sábado os alunos faziam ordem unida,
autêntica instrução militar, quer no
recinto da escola quer através dos
campos, com a roupa normal que tinham
vestida, pois os alunos não tinham farda
da mocidade portuguesa nem sequer
bata porque os pais não tinham dinheiro
para as comprar. A escola não tinha
aquecimento. No Inverno, o gelo e a neve
tornavam insuportável o frio dentro
da escola. Apenas o professor tinha aquecimento
através de um recipiente combrasas
denominado “escalfeta” , que de
vez em quando, ao longo do dia,
mandava um aluno a sua casa com o aparelho para que a família lhe
substituísse as brasas extintas por
outras bem acesas da lareira. Mais tarde, já
eu estava na quarta classe, o professor,
com a concordância dos colegas,
lembrou-se de adquirir quatro fogões a
lenha (salamandras), um para cada
sala, mas como não havia dinheiro,
fizeram um peditório aos pais dos alunos.
Como os meus pais já tinham dois filhos
na escola, contribuíram com cinco
escudos por cada um.
O horário escolar era das nove às doze e
das treze às dezasseis, creio
eu. Ao meio-dia íamos jantar (naquela
época, na minha aldeia, o almoço era de
manhã, o jantar ao meio dia e à noite a
ceia), mas havia alguns alunos que
ficavam no recreio e não iam jantar e a
razão, diziam eles, era que não tinham
nada para comer em casa! Como é que uma
criança pode aprender com o
estômago vazio? Eram estes que não aprendiam e que por isso levavam
pancada! As aulas terminavam na escola a
meio da tarde, mas não para os
alunos da quarta classe que ali pelo mês
de Maio, depois de saírem da escola
e irem a casa merendar, apresentavam-se
em casa do professor e, no quintal,
com os mapas dependurados nas árvores estudavam
a geografia geral, fixando
o nome das serras, o nome e o curso dos
rios e seus afluentes, as linhas de
caminho de ferro e suas estações , a
geografia económica do país, incluindo a
das ilhas e das possessões do ultramar,
etc , pois os exames estavam à porta
e era preciso estar preparado. Na
matemática, resolviam-se problemas, cujas
contas enchiam o enorme quadro preto;
problemas esses que o professor nos
dizia haver colegas dele que não os
sabiam resolver!
Ao longo dos anos este professor foi uma referência para aquela
população. Ainda hoje se fala dele: era
carrasco porque batia muito nos alunos
menos dotados, mas era um grande
professor porque os alunos obtinham
óptimos resultados nos exames!
Estas são, pois, algumas das minhas recordações
da minha frequência
da escola primária, em que a vivência
dos acontecimentos e os conhecimentos
adquiridos ajudaram à formação da minha
personalidade e contribuíram para
minha visão do mundo e da sociedade em
geral.
Joaquim Monteiro da Silva
PS: Por opção, o
texto não respeita o chamado acordo ortográfico
Ilda
Sonho ou
pesadelo?
Entrei na escola quando completava 7 anos. Estávamos em
Outubro de 1954. Recordo que andava irrequieta, muita ansiosa e sempre a fazer
perguntas à minha mãe, o que era natural, aproximava-se o primeiro dia de
aulas, 7 de Outubro.
Quando chegou esse grande dia, acordei bem cedo, levantei-me,
vesti o meu vestido novo, calcei as minhas socas de sola de amieiro e preparei
a minha mala com os livros novos comprados em Vila Real. O restante material
foi comprado na mercearia da minha terra, Sabrosa, lousa, giz, lápis, cadernos
de duas linhas, borracha, tinteiro de escrever, mata-borrão, etc. Tomei o meu pequeno-almoço,
uma chávena de café de cevada e dois pães quentinhos acabados de sair do forno
a lenha, barrados com margarina vaqueiro e lá fui eu acompanhada de outra
colega que morava na mesma rua.
O caminho, meu Deus,
nessa altura, parecia-me longo. Ia com alguma ansiedade em saber como seriam os
meus novos colegas e de conhecer também a minha professora.
Quando cheguei fiquei logo encantada com a escola, era um
edifício novo, tinha sido inaugurado no Verão desse mesmo ano, com um grande
recreio e um jardim muito bonito e bem tratado, muitas crianças, umas eu conhecia outras não.
Entretanto a campainha tocou e nós fomos entrando e sentando
nas respetivas secretárias à medida que a professora fazia a chamada. Éramos
perto de 40 crianças, a sala era enorme, e ao fundo existia um quadro, onde
escrevíamos sempre que a professora chamava, e duas molduras com as fotografias
de Salazar e do General Craveiro Lopes.
Seguiu-se a apresentação da professora Eduarda, era assim que
se chamava, de 29 anos, natural da aldeia de S. Martinho de Anta, terra do
poeta e escritor Miguel Torga, casada com o médico da minha terra, Dr. João Marques
e com dois filhos pequenos, respetivamente de um e três anos. Depois foi a vez
dos alunos se apresentarem e, no final falou que para além da pontualidade tinham
que estar atentos nas aulas e que os deveres de casa eram para ser feitos,
senão ficavam de castigo ou não entravam na sala. Mostrou também a régua de
cinco olhos, a palmatória de madeira para dar reguada para quem não estudasse e
não soubesse as tabuadas, incluindo os nove fora. Era uma pessoa rígida e muito
disciplinada, de poucos sorrisos, muito habitual para a época. Não gostei nada
dela, a maneira como falava assustava-me, foi uma tortura para mim, as horas
nunca mais passavam e eu só pensava em brincar com as outras crianças da minha
rua, além de estar já com saudades dos meus pais e das minhas irmãs.
Quando finalmente saí, cheguei a casa e a chorar disse à
minha mãe que não queria ficar mais naquela escola e com aquela professora, e
talvez por isso não guarde grandes memórias do meu primeiro dia de aulas,
porque o que eu pensava ser um sonho tornou-se um pesadelo que me acompanhou
até à 4ª classe.
Graciosa
Um dia inesquecível
No dia sete de Outubro de 1939,
saí de casa em ….
Acompanhada da Maria Judite, hoje com 89 anos e minha cunhada. Atravessámos
carreiros estreitinhos, cheirando a bela-luz. Louca com o vestido de gorgorina
aflanelado por dentro, encarnado, boina espanhola encarnada, meias de renda branca
feitas pela minha mãe, tamanquinhos de madeira por baixo e ponteirinhas
amarelas de cobre, feitos pelo meu pai. ……..
Era uma légua para lá (Jardos ) e outra de regresso,
por caminho-de-ferro. A meio do percurso, de um aqueduto por baixo dos carris,
saiu um animalzinho «igual» ao cão da minha tia Teresa, chamado Diu, Eu chamei: « Diu!», mas, em vez de um, vieram quatro Dius .
Afinal, eram raposas de rabo bem farfalhudo. Dei-lhes a minha merenda e elas
comeram-na.
A Judite comeu a sua merenda e
voltou para trás. Eu fui almoçar com os meus tios, perto da escola, e fui pedir
desculpa à D. Lucília, a regente. Tanto ao meu tio como à D. Lucília recitei
uma poesia que o meu pai me tinha feito memorizar:
«Pelo carreiro fora
Vai o burro e o tio Roque
Arre burro, tique toque.
E na azenha, a mó moendo
Vai moendo sem cessar
Em breve o grão será farinha
E depois o pão do lar»
É que o meu tio era moleiro.
Só que o livro estava manchado de
castanho, resultado de um ciclone que levantou uma telha da minha casa e
despejou numa prateleira.
A D. Lucília chamou o marido, que
era filho da Sr.ª Eufrásia e ele foi buscar cinco tostões de rebuçados de meio
tostão. Ganhei-os, portanto tive de distribui-los pelas minhas primas, colegas
de carteira Isabel e Joaquina.
Estava combinado entre os meus
pais que quando fosse tarde eu ficasse na casa deles. Assim aconteceu. O
Zezinho disse: « Olha, o piolho já sabe ler!», mas era de cor.
E até sabia o hino francês, que o
meu pai estava na França e ensinou-mo. Se maior fosse o dia, algo mais
acontecia!... E mais: Eu, a Joaquina e José André descemos o outeiro, fomos à fábrica de lanifícios do
meu padrinho, que ficava por baixo da ponte, sobre o rio Noémi que fazia girar
o rodízio que dava energia à fábrica, dizer aos dois tecelões Valérios que
fizessem o favor de dizer aos meus pais que eu estava com os primos.
Foi um dia inesquecível