1.
Gato na garganta
Entro no Centro de Dia com
uma história incómoda, ou seja, “um gato na garganta"..
Muito
a despropósito, pois vim para continuar a ouvir, não para falar de gatos.
Todavia trago um arrebunho na voz. Espero que se atenue, com o sobe-e-desce da
memória.
Não é de garra felina: trago comigo
Pedro Gato, companheiro de
brincadeira e briga, nas primeiras duas décadas das nossas vidas. Gineto das
convenções sociais, genioso na eletrónica… Fanático dos automatismos, da
velocidade.
Fora de causa. Sape, gato! Sape,
história! Licença, apenas, para um pormenor: Pedro era apelido; Gato, alcunha.
Pedro Gato, carbonizado, aos cinquenta, passava dos duzentos à hora.
Derrapagem, explosão da mota.
Erro de
cálculo, segundo os colegas universitários. Não se precatara com os primeiros
escaldões da vida, concluíram os antigos companheiros de infância.
Assunto encerrado. Porque chegou
a hora dos dois gatos da dona Maria Amena.
2.1
Sete anos de azar?
Sentamo-nos no refeitório.
Terminou o almoço: modorra.
Vibram tachos e panelas nas
arrumações da cozinha. Atrás de Maria Amena, abancam as senhoras do bingo; nas
minhas costas, o pessoal da sueca, quase sempre homens. Ao fundo, a televisão
abrasileira uma novela, para duas adormecidas espetadoras.
As nossas histórias, a leitura e
os livros são parceiros pobres, na recreação do Centro de Dia. Hoje, fluem da
boca de Maria Amena, confinadas entre o pregão da mandadeira do bingo e as
batidas secas dos descartes.
Sete anos de azar? Diz-se,
não creio. Pelo azar tinha andado
eu, primeiro ao volfrâmio, na serra da Peneda, uma garota, sem forças para
revolver as pedras, carregar os pesos, por vezes doente, quase sempre mal
alimentada. Mau passadio, sim senhor.
Melhorias vieram, algumas, finda a campanha
do minério, quando fui com a minha avó para casa do meu tio, em Castelo Branco.
Saí de lá com dezasseis anos, e voltei para
a veiga do Gerês. Estou daqui a vê-la, afogada nas águas, a veiga. E também a
minha aldeia.
Aqui vai o primeiro gato, prepare-se… Oh, diabo, desculpe,
está a cruzar-se na minha cabeça outra história, a dos “ É-gato-João!”. Sem
tirar nem pôr, uma família da minha aldeia. Chega o homem a casa, sai-lhe a
mulher do quarto, a acabar a trança. «Que barulho é esse, aí dentro?». Resposta
não tarda, como se já estivesse preparada há muitos antigamentes: «É gato,
João!»
Acreditou ele, o parrana. E logo o povo lhe colou a alcunha.
Não sei se me fiz entender? Adiante.
Outra alcunha era a dos Limonadas. Por que razão nunca soube. Lavradores como os
É-gato-João!.Maria. Limonada, minha amiga, veio ao meu encontro com mostras de
agrado:
«Há quanto tempo! Chegaste mesmo a calhar,
Maria Amena. Preciso da tua coragem, já te digo porquê…»
Queria que eu a ajudasse a dar sumiço a um
gato vadio. Daqueles que, como se diz, têm sete vidas. Metiam-no numa
serapilheira, largavam-no fora da aldeia, logo o patife chegava a casa primeiro
do que quem o fora despachar. Fecharam-no num cabaz, pediram ao condutor da
camioneta da carreira que o deixasse para lá da Vieira, já nem sei a quantos
quilómetros. Dois dias depois, estava o gato na aldeia, pronto para mais
estragos.
Esperto? Esperto e a fazer de toda a gente
parvos. Sempre que voltava, vinha pior, digo eu, pois o senhor não me
perguntou, pior como? Mais feroz a retraçar criação. Galinhas com pintos eram
um ver-se-t’avias: ao menor descuido, passava-lhe a ninhada pelos colmilhos.
Ora, porque não lhe davam um tiro? Ora
porquê?! Por não haver homem para arriscar. Cortavam-se: quem é que queria
amargar sete anos de má sorte, por abate de um gato, ainda que fosse aquele
traste?
Sete anos de azar?! Não, nunca acreditei em
tal coisa. Pensei: «Vamos lá acabar com este fadário, já que a Maria Limonada o
tem bem ensacado.»
Demos-lhe por companhia um pedregulho,
voltámos a apertar o saco e…zás! Atirámos a carga a um tanque.
Apesar do lastro, o bicho teve forças
para trazer o saco, por duas ou três vezes, à tona. Aquela agonia pode durar
uma vida, na má consciência de quem a causou.
Tinha dezasseis, já cá contam oitenta e
quatro –Escute,sou bisavó há dois dias! – mas até hoje não me queixo de azar.
2.2
O Fiquinhas
Este?
Ai este era um ai-jesus. Mal abria os olhos, quando o levámos para a loja. Em
Moscavide. Trabalhava de costura, Aí pelos inícios dos anos sessenta. Sim,
Moscavide.
Os homens deixavam a província ao acaso, arranjavam trabalho na
construção, atamancavam uma barraca para pernoita e, se a coisa corria a jeito,
acabavam por trazer a família. Todos a morar sem condições, muito pior do que
nas aldeias onde as ruas eram acamadas de mato. Havia ainda os barracões dos
ferros-velhos, das oficinas de automóveis, ah sim, constava que se faziam por
lá negócios com gatunagem.
Ciganos? Esses também por lá
apareceram, trocando a venda dos cortes de terilenes pela de alcatifas para os
apartamentos em construção. Depois haviam de mudar para as gangas e sei lá mais
o quê…Ciganos!
Tem razão, Moscavide era a praça dos autocarros e mais
uns arruamentos em obras. Mas crescia a olhos vistos. Cafés, tabernas… até uma
casa de - como é que se diz hoje? De alterne.
Foi na praça de Moscavide que um compadre meu,
desempregado de um grande fanqueiro da Baixa, montou uma lojeca de retrosaria.
Como eu me dava bem com a mulher dele, fazia para ali uns biscates: bainhas,
botões…Está o senhor a ver? Chegava a dormir lá, tinham uma cama nas traseiras
da loja. A dormir com o meu Fiquinhas,
entenda-se.
Cruzado de siamês. A mãe, pura de raça, era de uma
freguesa da retrosaria, que quase se sentiu desonrada, quando a sua menina se enrolou com um gato da rua.
Daí que tivéssemos ficado com um lindo mestiço na
loja. Os meus compadres também gostavam muito dele, mas era eu, era comigo que
o animal se ligou mais. Benfica,
batizou-o o meu compadre. Para mim, ainda hoje é o Fiquinhas.
Acredite que o animal andava completamente à vontade
na loja, sem estragar nem desfazer nada. De tão meigo, deixava que eu lhe desse
banho. E de uma vez bem precisava; passou quase uma semana fora de casa,
enrabichado pela lua de uma gata. Viram-no nas traseiras de uma taberna, á
porta da tal casa de alterne e nas barracas. Dali o trouxe, mal cheiroso, cheio
de crostas, a pedir limpeza.
Aquecia água num fogareiro a petróleo, lavava-o e
podia enxugá-lo completamente.Com uma toalha turca. Finda a toilete, vinha a
parte sempre apreciada pela freguesia da loja.
«Então e o
beijinho?» Indicava-lhe o sítio na minha cara: «Aqui!»
O gato
começava por me tocar com o focinho. Eu pedia mais:
«Festinhas,
agora uma festinha à dona. Vá lá ver.»
Levantava a
patita e passava-ma pela cara. Nunca lhe senti as unhas, parecia que calçava
luvas de seda. Nem quando queria fugir do meu colo.
Às vezes,
com uns miados dolorosos, reclamava o pastelinho do costume.
Pois
comprava, comprava pastéis de nata para o gato. Ele lambia-se, mas só com o
recheio; eu contentava-me com o resto.
O outro
pitéu era o melão. Onde é que ele aprendeu tal coisa? Saltava para cima da mesa
e comia, bocado atrás de bocado, uma talhada que eu lhe punha no prato.
Um dia
desapareceu. Ninguém na vizinhança dava sinais dele.
Quase me
envergonho hoje pelo muito que sofri, ao perder o gato.
Estaria o
bicho a prever o fim do negócio? Porque o meu compadre não conseguiu aguentar a
retrosaria. Falência, novo rumo.
Adeus,
Moscavide. Fui morar numa parte de casa na rua dos Açores, sempre a trabalhar
na costura.
Passaram-se
pr’aí uns sete anos, e estes sim, sete anos de mágoa por ter perdido um gato –
para mim não era um gato, era um príncipe perfeito. Já vivia aqui em Rio de
Mouro, quando me telefonaram. Que sabiam onde estava o Fiquinhas. Em casa de uma senhora idosa, em Moscavide, como deve
calcular. Corri logo lá.
No entanto,
olhe, primeiro, tive dúvidas: e se aquele animal não fosse o Fiquinhas? Embora parecesse o mesmo,
sentia-lhe uma falta. Não se passa apenas com os humanos, os gatos também
mudam. Nesta hesitação, abalou-me a súplica da senhora:
«Por amor de Deus, não me leve o gato. É a minha única companhia.»
Ponha-se o
senhor no meu lugar: o que fazia?
E eu? Pois
já lhe digo. Num instante, compreendi que o Fiquinhas,
o meu príncipe, se me varria da cabeça. Ficava liberta e curada de tal apego.
Despedi-me
da velhota. Acabei. Mas deixe-me ainda acrescentar: quando começámos a falar
dos nossos gatos, já mal atinava com esta história.
3. Nem tudo o que vem à linha
Cá está outra no basalto. Na semana passada, parado á
porta de um restaurante, a S. Cristóvão, em Lisboa, esperava-me mais uma meada.
Puxo e enrolo.
Declaro-me desde já coletor e reutilizador de todas as
pontas de fio deixadas, na rua, pelos carteiros. Observem a velocidade a que
eles ou elas sacam do malote um atado de correspondência, arremessam o atilho e
se apressam na entrega. Quilómetros de excelente fio, desperdiçados por essa
Lisboa, pelo país. Isto revolta um poupado da minha laia. Há dias em que volto
a casa com duas ou três meadas no bolso!
Cá vem mais uma, do basalto! Puxo e enrolo, puxo…Alto!
Prendeu? Sinto ansiedades de pescador: está a picar ou quê? Soltou-se
novamente. Torno a enrolar. Logo volto a sentir a linha presa… Afinal de
contas? Ah! Com que então?!
Na ponta caída, a dois ou três
passos, quem se diverte à minha custa? Puro jogo: solta e prende.
Finda a brincadeira, roçou-se na minha perna. Por ter
chegado até mim, sem isco nem anzol, ganhou uma carícia. A troco da meada que
guardei no bolso.
Quando, no dia seguinte, em casa, contei aos meus
netos, a Sofia rematou:
- Que cena, avô! Tu pescaste um gato?!
- Um gato, Sofia?! – Espanto da Marta, acabando de
chegar.
- Bom, era uma gatinha. Preta, com coleira cor-de-rosa,
disse o avô.
Protestos do Tiago, quatro anos incompletos:
- Não, avô, ela pode comer o meu peixinho!
Maria Amena, JB e vários gatos